Novo paradigma galaico 2: a não violência

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O exercício da não violência encaminha a um estado de mudança social tal, que propriamente torna os iniciados desta filosofia vivencial em verdadeiros agentes do câmbio global que terá de viver a humanidade.

No mundo de guerra em que hoje vivemos, existe uma agressão continuada, que quase divide a humanidade em dois bandos antagónicos, em contínua fricção de interesses: opressores e oprimidos. Senhores e servos: dominadores e dominados.

Esta sociedade herdeira do mito universal da “sobrevivência” e a “escassez de recursos” (nascido como mínimo há perto de 200 mil anos com o surgimento do homo sapiens e a rutura do equilíbrio na cadeia alimentar) vive em contínua e desonesta concorrência, à procura do prezado sustento; de tal modo desesperada que mesmo dentro dos dois grandes escalões sociais a luta se perpetua, pelo domínio – em horizontal – entre senhores pelo poder e entre vassalos pelo sustento – servidão –.

O macromundo coletivo da dominação tem o seu reflexo perfeito (seguindo a máxima hermética: acima como abaixo) no micromundo individual dominador, onde o indivíduo tem de tentar exercer algum tipo de violência (único meio de garantir a dominação) e assim poder criar certo ambiente ilusório de força, que lhe permita colocar-se dentro da sociedade guerreira, nos chamados “critérios de normalidade”, que são definitivamente a nossa guia de convivência. Isto evidentemente traz consigo um contínuo exercício de violência, em pequena escala – dada a violência em grau superior estar reservada à autoridade estatal ou a grupos perfeitamente organizados – que segundo o grau de deterioro do poder Estatal concorrem com ele, em determinados espaços, pela supremacia.

Esta errada visão legaliza a intimidação – mais direta ou mais sublime – como ferramenta continuada, de modelação da organização coletiva, a todos os níveis: familiar, escolar, laboral… Criando estratégias de dominação e sobrevivência, que vão daquelas mais sugestivas e encobertas, àquelas mais explícitas e diretas. O mais fraco tratando de conquistar com a sua fraqueza um lugar adequado, com a permissão do mais forte que pode impor os seus encantos – todos viciados no paradigma da força, onde mesmo a benevolência é entendida como um atributo superior do poderoso. Sendo assim, o equilíbrio e moderação são encaixados na sociedade como uma cessão da cima à base em aras da criação de um equilíbrio precário baseado na paz da ameaça: recurso à força em caso de rutura do contrato social. Contrato social preestabelecido no imaginário coletivo, segundo o qual o fraco aceita a dominação em troca de certa comodidade para poder subsistir. O tipo de contrato varia de umas sociedades a outras, segundo o grau de desenvolvimento, mas a sua raiz segue firmemente ancorada à determinação da sobrevivência, mediante o exercício do domínio ou submissão ao poder – em troca de certo grau de comodidade e proteção. Comodidade em troca de liberdade: a maior comodidade menor capacidade de independência, menor liberdade.

Numa sociedade assim o exercício integral da não violência, traz consigo uma transformação total quer do indivíduo, quer das pessoas e do entorno com que ele interage e no qual inevitavelmente se integra. Resulta numa tríplice combinação de mudanças efetivas, baseadas na fraternidade real, e não na visão idealizada e destrutora da procura da liberdade – através do combate.

Esse triângulo evolutivo na paz é revelado: Um, trabalho profundo interior de modificação da existência e ultrapassagem dos padrões negativos – da guerra e violência – previamente estabelecidos pelos condicionantes sociais. Dois: trabalho exterior de modificação das relações de violência exercidas sobre o entorno. Três: trabalho interior e exterior, que conduza a modificações das relações de dominação entre povos e indivíduos.

Renunciar conscientemente a toda violência – é dizer pôr a nossa plena atenção na consecução desta realização – traz benefícios palpáveis a curto prazo para nós e o nosso entorno, e a longo prazo, para toda a coletividade. Gandhi dizia: “Cada vez que uma pessoa dá um passo em favor da paz, toda a humanidade dá um passo em favor da paz”.

Construir um novo paradigma galaico da paz, achega consigo a renúncia a toda forma objetiva e subjetiva de violência consciente ou inconsciente: violência política, violência económica, violência verbal, violência física ou psicológica, violência cultural (inferiorização de uma cultura sobre outra, ou outras…). Ajuda a fomentar um diálogo abrangente – desde a base até a altura – em todas as organizações. Diálogo não debate, dado o debate viver no formato da guerra – concorrência, fomentando a visão errada de vencedor vencido; enquanto o diálogo fomenta a busca de lugares comuns, cessão mutua não ególatra e princípio de compartilhar.

Requer esta aposta, no nível individual, de uma forte determinação tendente à superação das fraquezas e medos interiores e, à sua vez, formação de um caráter não rígido, mas com raízes profundas e vontade de ferro para enfrentar e remover aquele lado mais escuro do indivíduo. Consumado o trabalho interior, precisamos de uma aposta exterior em toda a rede galega encaminhada a uma mudança total de perceção da realidade – como uma realidade agressiva e de confrontação, para uma nova realidade compreensiva e de cooperação. Deixando de ver o contrário como uma ameaça e passando a encarar o nosso próximo como o espelho virado da nossa mesma alma. Observando a diversidade como riqueza na unidade, e não como divisão e competência, na procura de uma unidade única e forçada pela imposição dos fatos.

Todos os grandes mestres de todos os tempos, desde Buda a Jesus Cristo, São Francisco passando por Gandhi, Ramana Maharsi ou Martin Luther King, entenderam que a não violência constituía o primeiro degrau do caminho que conduzirá a humanidade ao fim de toda ignorância. Na Galiza podemos percorrer esse sendeiro, com o qual indiretamente Rosalia sonhou – naquela idílica sociedade de camponeses solidários…

Mudar da sociedade da guerra para a da paz significa também mudar o ego guerreiro, que nos mantém presos no eterno combate criado pelo medo e a culpa, projetado nos outros através de diversos mecanismos que tentam minorar o sofrimento interior nascido da ilusão de combate pela sobrevivência e escassez, num planeta cheio de amor e exuberante entrega, da que nos depredamos da mesma forma que nos matamos entre nós mesmos – criando precisamente essa escassez, que desde o nosso ególatra ser ao mundo se projeta.