Uma viagem pela melhor música portuguesa com Ana Laíns e a Banda do Landro

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Chegava o dia da participação da Ana Laíns nas Festas de Viveiro e, como o concerto se fazia “em aberto” na Praça Maior, resolvemos ir com tempo para conseguir assento em bom lugar. Por volta das oito e meia da tarde, quando faltava hora e meia para o início, duas dúzias de cadeiras já estavam ocupadas. Bom sinal. Enquanto procurávamos informação a respeito do patronímico Laíns na Galiza (com presença nas terras de Ponte Vedra, Marim, Ponte Caldelas e Soutomaior), recebíamos os primeiros cumprimentos de pessoas conhecidas: “Viestes ao fado? Nós já estivemos durante as provas de som. Teremos um bom concerto!” -dizia um jovem casal com uma criança de dois anos. “Este lugar está livre?” -perguntava agora uma emigrante retornada, que deixou Viveiro com só 9 anos -em 1948- com destino às Astúrias e posteriormente a Madrid e Bruxelas. Como esta amiga de idade avançada e espírito juvenil contava a sua odisseia tão bem, os minutos voavam sem sentir. Por volta das 21:30 as 500 cadeiras da praça estavam ocupadas e nas esplanadas dos bares não cabia nem uma agulha.

Por volta das 21:30 as 500 cadeiras da praça estavam ocupadas e nas esplanadas dos bares não cabia nem uma agulha.

As autoridades municipais, com Maria Loureiro à cabeça, ocupavam os lugares reservados. No palco tudo estava bem, segundo se desprendia do rosto do Paulo -também Loureiro-, que realizou a inspeção antes de sentar ao piano e fazer a posta a ponto das ferramentas informáticas.

À falta de quinze minutos, alguns instrumentistas da Banda do Landro tomam posições. Soam os primeiros acordes como efeito-chamada a um exército de músicos que desce pela rua do Teatro. O público das cadeiras está já rodeado por mais gente que terá de seguir de pé o concerto.

Com pontualidade, às dez da noite começa o espetáculo. Entra Carlos Timiraos, Diretor da Banda do Landro; o público aplaude protocolarmente e abre o repertório María, la portuguesa em versão instrumental. Só oito minutos depois, Carlos desce do palco. Há um silêncio total. Imediatamente sobe outra vez, agora acompanhado pela artista principal, elegantíssima, que traz um adufe no peito, como se lhe for necessária proteção. O tímido “boa noite” quase não se ouve. Mas o que sim se ouve são os primeiros versos: “Não sei, não sabe ninguém/ Por que canto o fado /Neste tom magoado / De dor e de pranto” e nós pensamos que foi Deus quem nos pôs nos ouvidos esta música da Amália interpretada pela Ana Laíns. Algo assim passa pela cabeça do músico anfitrião, que tem o sorriso no rosto e que a convidada é capaz de ler. Isso dá-lhe força. A resposta positiva do público à pergunta de se fala em português também. Em pouco tempo, a timidez desaparece e aflora a primeira brincadeira: “Se não gostarem, finjam que gostam“.

Como diz a canção, “é ingratidão falar mal do vinho”. Foi por isso que mais uma vez a cantora falou um bocadinho e cantou igual de bem; o público manteve-se em equilíbrio, as leis da física não falharam, e começaram as primeiras palmas de acompanhamento. Com esse estímulo, antes de nos levar pela Rua do Capelão, a artista fez novo discurso pedagógico desta vez para nos falar da Severa, a quem tributou homenagem.

Duas versões instrumentais –”o Sacristão de Coimbra”, popularizado há muito tempo por Pilocha e por Maria Manuela e Miguel; e o “Havemos de ir a Viana”- serviram de união entre o primeiro e o segundo bloco do repertório. “Posso dizer que já somos amigos?” perguntou a estrela da noite. Com a confiança de que já o éramos, imediatamente a seguir chamou para o palco o Paulo Loureiro. Após uma lindíssima declaração de amor renovado, novas palavras pedagógicas para explicar o debate entre “fado boémio” e “fado aristocrático”. Foi o prelúdio à interpretação do “Fado das horas”, da Mª Teresa de Noronha, e à entrada de dois novos músicos, o baterista-percussionista João Coelho e o guitarrista Bruno Chaveiro, recebidos com carinho. A interpretação da “Canção do Mar” marcou a total sintonia entre o palco e os centenares de almas que povoavam a praça. Nesse momento, a “Cantora Colorida” falou do Zeca e cantou o “Vejam bem” e a “Moda do Entrudo” em Viveiro, terra de gaivotas onde o “entrudo chocalheiro” continua bem vivo. O adufe deixou de ser ferramenta de defesa. Ficava bem às claras que a gente madura participava com entusiasmo e que só o escritor Nicomedes Pastor Díaz continuava impassível na sua estátua. Com a “Canção de embalar” não chegamos a adormecer, mas por momentos subimos até o quarto ou quinto céu, desde onde ouvimos as duas únicas músicas próprias da discografia da Ana Laíns: a “Verdade da mentira” (visão satírica dos nossos tempos) e os “Quatro caminhos”. Em comunhão absoluta com o ambiente, a rainha do palco descalçou-se ( disse que “os sapatos são a mentira”), sentou-se na beira, confessou que a maquilhagem estava indo embora e brincou com uma voz do público que pedia a “María, la portuguesa”: “Já a tocaram, querida; não estavas atenta“.

Em comunhão absoluta com o ambiente, a rainha do palco descalçou-se ( disse que “os sapatos são a mentira”), sentou-se na beira, confessou que a maquilhagem estava indo embora e brincou com uma voz do público que pedia a “María, la portuguesa”: “Já a tocaram, querida; não estavas atenta“.

 Estávamos quase no fim. Só mais uma explicação: a história da “Mãe preta” e do “Barco negro”. Era o momento do diálogo a três: a viola do Bruno, a percussão do João e a voz da Ana. Minutos sublimes. Quando o público grita a coro “Nunca mais à escravatura”, apagam-se as luzes do cenário e surgem luzes brancas a iluminarem os rostos da gente. É o “momento Grândola”, em versão originalíssima. A Ana grita vivas a Portugal e à Galiza e o público, em pé, aplaude prolongadamente.

O concerto foi um triunfo da cultura ventureira. Sem quase publicidade, a chamada da música portuguesa funcionou. Reuniu-se muito público e criou-se um ambiente excelente. O melhor de tudo: a comunicação perfeita entre a artista e as duas bandas: a sua e a do Landro. Foi realmente maravilhoso comprovar como se entendem musicalmente a mestra Socorro Giz, com 4 decénios de experiência na banda, o virtuoso Martín Tojeiro e o Vítor López, de só 13 anos, que acaba de entrar na formação. Um dez também para o Carlos Timiraos, extraordinário docente da cultura musical de base.

Seria magnífico que este concerto se repetisse noutros lugares: no Auditório da Galiza, em Santiago de Compostela; no Gustavo Freire, em Lugo; ou mesmo em Viana do Castelo ou Chaves. Da mesma maneira, confiamos em que o modelo se repita noutras localidades com bandas populares (Foz, Vilalva, Sober…) e que algum desses concertos seja retransmitido ao vivo pela TVG ou gravado para uma emissão posterior.

A matéria-prima é excelente e a demanda existe.