Para uma (re)interpretação do surto do ILG

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No passado ano 2021 o Instituto da Lingua Galega (ILG) cumpriu cinquenta anos. O ILG é um centro de investigação da Universidade de Santiago de Compostela (USC) e a ele devemos a formalização dos estudos científicos sobre a língua portuguesa da Galiza («idioma galego»). Para além disto, encarregou-se também da codificação, elaboração e modernização, segundo a terminologia de Haugen, daquele idioma.

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Visita de Dámaso Alonso ao ILG no curso 1975-76. De esquerda a direita e de arriba a abaixo: María del Carmen Ríos Panisse, Antón Santamarina, Dámaso Alonso, Constantino García, Rosario Álvarez, Xosé Luís Couceiro, Guillermo Rojo, Carlos Blanco, Manuel González, Mercedes Brea e Francisco Fernández Rei na sede do ILG.

O seu nascimento tem sido narrado em inúmeras ocasiões, normalmente como celebração de um aniversário redondo ou como laudatio a alguma investigadora fundadora (investigador fundador, para maior exatidão) chegada a idade da sua reforma académica. Assim, os 25 anos do ILG trouxeram consigo a publicação de um artigo de Xesús Alonso Montero na revista Galicia internacional («O Instituto da Lingua Galega: 25 anos a contragolpe», junho 1996) e de uma entrevista de Henrique Monteagudo ao então director Antón Santamarina no número 129 (tomo 34) da Grial. Aos 40 anos do Instituto, esta última revista dedicou-lhe inteiramente o seu número 191, com artigos historiográfico-documentais de María Dolores Villanueva Gesteira, Ernesto González Seoane e Serafín Alonso Pintos, e ainda uma entrevista de Víctor Fernández Freixanes à na altura directora Rosario Álvarez Blanco.

Quanto às louvações, a USC publicou volumes homenagem a Constantino García (Homenaxe ó profesor Constantino García em dois tomos, 1991), Xosé Ramón Barreiro (A patria enteira. Homenaxe a Xosé Ramón Barreiro Fernández, 2008) e Mercedes Brea (Cantares de amigos. Homenaxe a Mercedes Brea, 2016) a incluirem relatos semelhantes sobre o surto do Instituto. Igualmente, a consulta das biografias dos investigadores Constantino García (no volume citado), Antón Santamarina (Cada palabra pesaba, cada palabra medía. Homenaxe a Antón Santamarina, 2008), Francisco Fernández Rei (Limba noastra-i o comoara… Estudos de sociolingüística románica en homenaxe a Francisco Fernández Rei, 2018) e Manuel González González (Obreiro da lingua, amigo da xente. Estudos de xeografía lingüística en homenaxe a Manuel González, 2018) contribuem notoriamente para a construção do dito relato. Podem consultar-se ainda os artigos dedicados a todos os investigadores nomeados na Gran Enciclopedia Gallega de Silverio Cañada, levando em conta que os dois últimos aparecem recolhidos apenas desde o primeiro apêndice (tomo 32, 1980-90). (Merece a pena, a este respeito, assinalar que o nome feminino mais visível deste relato, a atual presidenta do Consello da Cultura Galega, Rosario Álvarez Blanco, não conta por enquanto com qualquer volume homenagem e aparece referenciada na dita Enciclopedia só desde o apêndice de 2010-15 [tomo 47], ainda com uns dados cujo rigor em muitos casos dista do desejável; sim aparece, com o resto de colegas, na Enciclopedia Galega Universal de Ir Indo.)

Dos já citados artigos, que se podem acompanhar ainda do monográfico 12 da Revista Galega de Filoloxía (Freixeiro Mato, 2017) para uma maior riqueza documental, exprime-se um relato coeso sobre a história do ILG. Porém, todos estes contributos, se calhar pela sua condição de laudatórios, coincidem numa ideia que o presente trabalho pretenderá demonstrar errada, a saber: a apresentação do ILG como um projeto empreendido pelo Departamento de Românicas da Universidade para cobrir uma demanda do campo cultural galego. De acordo com este discurso, o ILG teria sido um fim em si mesmo, como instituição fundamental para o conhecimento científico da língua, e a colocação de Constantino García na sua direção um meio para permitir que o projeto saísse adiante, de maneira a completar as necessidades do campo cultural. Se a produção deste discurso corresponde aos agentes do ILG (excepção feita ao artigo «O ILG da USC» de Serafín Alonso Pintos no Labor Histórico dedicado ao ILG [janeiro-junho 2017], único contributo que temos encontrado fora daquela outra linha discursiva), a sua reprodução deve-se também a outras entidades do campo cultural, chegando a ser assim apresentado por alguns dos mais directos opositores ao Instituto como o Vítor Vaqueiro na apresentação do sexto número da revista Kallaikia da Associaçom de Estudos Galegos (a partir do minuto 11:25). Para a desconstrução desta ideia, reconstruir-se-á o relato a partir das mesmas fontes e justificar-se-á a conclusão mediante a narração dos anos posteriores, os primeiros da vida do Instituto.

O ILG teria sido um fim em si mesmo, como instituição fundamental para o conhecimento científico da língua, e a colocação de Constantino García na sua direção um meio para permitir que o projeto saísse adiante, de maneira a completar as necessidades do campo cultural.

É sabido que na década de sessenta o regime franquista, perante o colapso económico do decénio anterior, se viu obrigado a abrir-se para o mercado internacional e reduzir consequentemente os níveis e modos repressivos até então vigentes, como a censura ou a perseguição linguísticas e culturais permitidas pela Ley 14/1966, de 18 de março, de Prensa e Imprenta: a Lei Fraga. Entre as consequências disto somam-se a modernização da Universidade e a introdução dos estudos sobre a língua da Galiza como uma possibilidade no currículo universitário (e, em 1970, também no primário e no secundário). Neste marco chega a Compostela o professor Constantino García para ocupar a Cátedra de Filologia Românica e traz consigo inovadoras metodologias importadas da Universidade de Bonn, onde tinha trabalhado com Harri Meier e Eugen Coseriu. Na universidade galega começou como encarregado de uma área geográfica do projeto dialetológico de Manuel Alvar, discípulo de Menéndez Pidal e membro da sua escola filológica, onde também se havia formado García. A passagem do tempo fez com que García convertesse a sua sucursal num projeto próprio, com os mesmos objetivos e semelhantes métodos, dirigido por ele. Para tal conseguiu a força de trabalho dum séquito de estudantes e bolsistas com interesse no estudo das falas galegas, como relata Maria do Carmo Henríquez no segundo tomo da Homenaxe a García. Contudo, uma empresa assim necessitava também fontes orçamentárias para além do permitido pelos estatutos universitários, o que motivou a fundação de um Instituto de la Lengua Gallega (sic) que percebesse financiamento da Fundación Barrié e, em menor medida, da Penzol e da Fingoi.

Constantino García não foi uma pessoa escolhida para se colocar à frente de um Instituto projetado desde a Universidade para cobrir as necessidades do campo cultural em (re)construção. Antes, o professor foi precisamente o impulsor do projeto, motivo principal de que fosse ele que se pôs à sua cabeça.

Portanto, Constantino García não foi uma pessoa escolhida para se colocar à frente de um Instituto projetado desde a Universidade para cobrir as necessidades do campo cultural em (re)construção. Antes, o professor foi precisamente o impulsor do projeto, motivo principal de que fosse ele que se pôs à sua cabeça. Outra coisa é, e isto sim parece claro, que o facto de ser Constantino García e não outra pessoa (como, por exemplo, o então catedrático de Linguística e literatura galegas, Ricardo Carballo Calero [sic], com um expediente nada favorável aos olhos das autoridades franquistas) quem propusesse a fundação de um Instituto supradepartamental tivesse fulcral relevância no sucesso da dita fundação. Por outras palavras, a capitalidade de García na etapa fundacional do ILG explica-se pela sua facilidade para conseguir a anuência das instituições políticas franquistas frente à incapacidade de outras pessoas neste mesmo senso, mas também e sobretudo pela existência prévia de um projeto científico a oferecer. O ILG, assim, não nasceu como fim, mas como meio.

Quanto à fundação em si mesma, costuma tomar-se de referência a roda de imprensa de 14 de maio de 1971, com a presença entre outros de Constantino García e o Reitor da USC na altura, Manuel Jesús García Garrido (antigo regidor nas Cortes e membro do Opus Dei). Entre outros projetos, aquele dia apresentou-se o método de ensino e aprendizagem da língua Gallego 1, assinado pelo ILG. Porém, não se pode descuidar que foi apenas um evento no marco de uma campanha mais ampla, nem só de difusão, como também de legitimação. O ILG, como acaba de ser exposto, contava com o beneplácito das instituições políticas do regime, mas uma parte do espaço social que pretendia ocupar devia fazê-lo em concorrência com os agentes históricos do campo cultural e do político ou, se se quer, do que Antón Figueroa chamou de «campo de produción ideolóxico» no seu livro Ideoloxía e autonomía no campo literario de posguerra (Laiovento, 2010). Com este alvo, o ILG, ainda como Departamento de Românicas da USC, organizou umas jornadas de romanística na Faculdade de Filologia para as que convidou especialistas de reconhecimento internacional, que para além do mais detinham grande respeito e admiração por parte do campo cultural encabeçado por Galaxia. Os nomes eram Manuel Rodrigues Lapa, Luís Filipe Lindley Cintra, Joseph Maria Piel e José Luís Pensado Tomé.

Para além de Constantino García, fizeram parte da comissão redatora do Gallego 1 os investigadores Xosé Luís Couceiro, Guillermo Rojo, Antón Santamarina e, como última incorporação, Ramón Lorenzo (figuram, sintomaticamente, como colaboradoras Luísa Fernanda Pensado, Inés Leis e María do Carme Ríos Panisse). Não surpreende que todos os nomes da lista tivessem algum tipo de vinculação com os ditos campos cultural e político desde a década pretérita, quer mediante a publicação em Galaxia, a militância política, o associativismo cultural ou até a música de protesto. Com este ponto de partida, o Instituto ia ter muito mais fácil o caminho da legitimação perante agentes culturais e políticos mais institucionalizados no espaço social galego. De facto, a equipa de investigadores convocou para uma reunião uma larga lista de vultos do galeguismo da altura, resultando da mesma, após um longo debate, o visto e praz dos assistentes. Uma crónica desta reunião pode consultar-se no artigo que Constantino García publicou no número 31 da revista Grial «Orixen e problemas do método de galego».

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Três volumes do método Gallego editado pelo ILG em 1971 (1°), 1972 (2°) e 1974 (3°) (1ª ed). Fonte: Clara Corbelhe.

Tanto a bem sucedida reunião como a própria publicação da crónica por parte de García nas páginas de Grial, espaço de difusão privilegiado pelo campo cultural galego, dão conta das estratégias legitimadoras empreendidas desde o seu nascimento pelo ILG. Como já se assinalou, o novo Instituto projetava ocupar um espaço social parcialmente ocupado na altura por agentes de outros campos. Pretendia-se, em suma, a constituição de um novo campo com forças autónomas e independente do campo cultural e do político, o que se denominará aqui ad hoc e provisoriamente campo académico galeguista, mas para isso era necessário o permiso de certos agentes.

Uma vez constituído oficialmente o Instituto universitário (ata da Junta de governo da USC de 11 de junho de 1971), tem lugar o primeiro Padroado, em que se aprovam os Estatutos definitivos do ILG (26 de julho). A primeira equipe diretiva do ILG foi integrada por Constantino García na direção, Manuel Díaz y Díaz na vice-direção e Ricardo Carballo Calero na secretaria, ficando representada a conformidade da Universidade franquista mas também a do círculo galaxião. Mais do mesmo no dito Padroado, com vultos de tanto relevo como Gerardo Fernández Albor, José Filgueira Valverde ou Marino Dónega entre outros.

A primeira equipe diretiva do ILG foi integrada por Constantino García na direção, Manuel Díaz y Díaz na vice-direção e Ricardo Carballo Calero na secretaria, ficando representada a conformidade da Universidade franquista mas também a do círculo galaxião. Mais do mesmo no dito Padroado, com vultos de tanto relevo como Gerardo Fernández Albor, José Filgueira Valverde ou Marino Dónega entre outros.

Em síntese, a estratégia seguida pelo Departamento de Românicas da USC com García à cabeça consistiu em colocar à frente a sua legitimidade científica, a sua competência técnica, com metodologias importadas da Europa. A sua preocupação pelos temas galegos, posterior à empresa como tal, obrigou a negociar com certos agentes do espaço social galego, que se viram na necessidade de recuar perante um acúmulo de capital simbólico (neste caso, a dita competência técnica) com que ninguém estava em posição de competir na Galiza. Resulta indicativa a declaração de Piñeiro a Losada em carta de 1971 segundo a qual urge «asocialos», referindo-se ao Departamento de Românicas, especialmente tendo em conta o posterior devir dos agentes no campo cultural galego e no então embrionário campo académico galeguista (ademais de na página 184 do citado monográfico de Freixeiro Mato [carta nº 38], pode ler-se a carta na seleção publicada por V[íctor Fernández]. F[reixanes]. no número 171 da Grial). Repare-se, como parte daquelas estratégias, na escolha nada inocente dos momentos de apresentação do ILG: as semanas das Letras (para o Gallego 1) e da Pátria (para a primeira sessão do Padroado) galegas, datas fundamentais na semiótica galeguista.

Vistas estas estratégias e a génese do ILG, parece suficiente a documentação para postular uma nova interpretação para as origens da que foi a primeira pedra na construção do campo académico galeguista1. Frente ao que costumeiramente se tem apresentado como a resposta a uma necessidade do campo cultural galego, que teria nascido no seu seio como sendo um enclave deste, proponho aqui que se leia o surto do ILG como a ferramenta que o campo académico espanhol (neste caso representado pelo seu agente Constantino García) escolheu para promocionar um projeto também surgido dos interesses da ciência espanhola. Assim, independentemente da sua posterior compulsação por parte do campo cultural e ainda da sua institucionalização mesmo fora do seu âmbito de atuação originário (o trabalho científico ao redor da língua), o campo académico galeguista não seria mais um enclave do campo cultural galego, mas uma cisão do campo académico espanhol.

1 pode ser c.a.galego se se considera uma norma sistémica a preocupação por temas galegos ou a promoção da cultura galega diferenciada.

[Este artigo foi publicado originariamente em Clara Corbelhe]