Sai do prelo o último livro de Raquel Miragaia, Corpus, catorze relatos, da mao da Através Editora. Falamos com ela.
Este é um livro assaz polifónico: diferentes narradoras, diferentes tons, risos, tragédias, ironias. A matriz comum, dizes, as relações dos corpos com o mundo. Como são essas relações?
Essa relação dos corpos com o mundo é o assunto principal do primeiro relato, o que dá título ao livro. Nele, refletia sobre essa relação num momento muito concreto da vida, quando temos que atender obrigatoriamente a ele porque começa a falhar, a deixar de suster-nos. É, aliás, protagonizado por uma pessoa que dedica a sua vida ao trabalho intelectual e que se afasta do corpo. Creio que é um sintoma dos tempos também, em que ou esquecemos essa parte fundamental da vida ou a colocamos no centro de forma doentia. Estou pensando nas tendências atuais a “cuidar-se” de forma compulsiva. Estava escrevendo esse conto quando pensei na opção de construir este livro e relendo relatos antigos percebi que havia em muitos deles uma aproximação às personagens como corpos no mundo: como ocupam os espaços, como são percebidos, como os seus movimentos podem ser observados para entender a sua vida… É verdade que não tem o mesmo peso em todos os relatos, mas sim senti que era um tema bastante presente.
São textos de diferentes momentos da tua vida (eis o tempo-Tardade aplicado à criação!). Continuas vendo qualquer coisa de ti em todos eles?

Isso é uma das cousas mais interessantes que me aconteceu tanto na reedição do Diário comboio como agora nestes contos, a percepção de que os temas que me rondam se repetem, como disse Ismael Ramos quando lançamos o Diário em Noia, já parecem mais teimas do que temas. Reconheço-me, sim, É verdade que há cousas do estilo que sinto que mudaram, ou mesmo algumas histórias que agora escreveria doutra maneira, como a que se passa na escola, mas no essencial reconheço-me.
Que surpresas achaste na releitura desses textos antigos?
A primeira surpresa é o que tem a ver com a pergunta anterior, o facto de seguir reconhecendo-me. Depois, acho também atrativo o facto de ainda considerar que merecem ser publicados. Tendo a pensar que o tempo pode não fazer bem a tudo o que se escreve, mas neste caso, penso que não ficaram obsoletos. De facto, o que mais me surpreendeu foi o que se passa na escola. É um relato inédito que escrevi o primeiro ano de entrada na docência, no ano 2000, e, apesar de que agora talvez escrevesse outra história, acrescentando 12 informes que escreve a professora, o resto considero-o bastante atual.
Os relatos vêm agrupados em quatro títulos: Ausência, Silêncio, Futuro e Beleza. Como chegaste a esses quatro?
Por algum motivo que não sei explicar muito bem, não queria só compor um livro de relatos, uma compilação, queria construir um livro com uma linha argumental, de aí à relação das histórias com as personagens como corpos. As quatro seções estão organizadas com a intenção de passar do mais duro ao mais esperançador, da morte à vida, por dizê-lo de alguma maneira. A primeira secção gira em torno à morte, a segunda em torno às cicatrizes e os traumas, a terceira em torno às neuroses modernas e a última, como diz o título, é uma secção sobre a beleza, o único que nos resgata das barbaridades quotidianas. Não por acaso o livro se fecha com uma história de amor feliz. Creio que a maioria dos relatos têm uma carga pesada, reflitem durezas e conflitos, por isso, havia que dar um respiro porque a vida também os dá, e acostuma a ser através da beleza.
A primeira secção gira em torno à morte, a segunda em torno às cicatrizes e os traumas, a terceira em torno às neuroses modernas e a última, como diz o título, é uma secção sobre a beleza, o único que nos resgata das barbaridades quotidianas.
Estamos acostumadas a ler-te textos breves. Neste caso ou no Em tránsito, relatos, mesmo o Diário Comboio foi construído como livro de contos, e o Tempo Tardade é romance breve com capítulos pequenos, acrescentando ainda a interposição das cartas. Porque achas que te sentes mais cómoda nessa distância curta?
Não sei dizer, sempre fui leitora de relato curto, creio que tenho muitos mais recursos para escrever contos. Também gosto, como leitora, dos romances, também dos longos sempre que estiverem bem escritos, mas como escritora sinto-me incapaz de suster o interesse por tanto tempo. Talvez tenha a ver com uma certa ansiedade por contar o que quero contar ou por falta de perícia mesmo.
Porém, tu mesma reconheces ser faladeira. Porque falar longo e escrever breve?
A arte, e a literatura como arte, não precisa de grandes extensões para dizer muito. As pessoas, sim. Escrever penso que tem uma dose também de manejar as ausências, o não dito, talvez por isso escrevo breve. Ou talvez por algo mais prosaico como a minha preguiça para disciplinar-me, nos tempos livres do trabalho, para escrever. Quando falo, muitas vezes é para explicar isso não dito, ou para compreender-me, ou para ordenar o que estava intuitivamente baralhado na cabeça… por isso, preciso de muitas mais palavras. Acho.
A maioria dos relatos são completados de uma ou outra forma pelo silêncio ou, para o expressar com termos da escrita, a ausência de significante. Gostas de que cada leitora preencha a história à sua própria maneira? Ou então pretendes que o silêncio seja lido de uma forma concreta em cada caso?
As leituras dos silêncios, das ausências, sempre são dirigidas, embora às vezes levem a mais de um caminho. Mas também há que aceitar que as leitoras tomem caminhos diferentes e mesmo que às vezes esse desvio se deve à tua falta de habilidade para marcar a direção. É um aspecto que não me preocupa demasiado, até posso achar graça em como algumas pessoas fazem leituras dos meus textos que não têm nada a ver com a minha intenção, como quando percebem influências de literatura que eu desconheço. Afinal, cada leitora leva a sua própria bagagem ao texto.
Como contraponto ao teu ritmo lento e macio, nalguns relatos acontecem eventos inesperados, quase selvagens nalgum caso, como mortes violentas. Qual o teu interesse nesses traumas súbitos?
O interesse é o mesmo que pelo resto dos assuntos: acontecem, são matéria da vida e às vezes de forma muito inesperada. Penso que neste livro sucedem sobretudo na secção “Futuro” e têm a função de ser contraponto das banalidades. Afinal, esquecemos com muita facilidade que tudo aquilo que damos por suposto pode desaparecer sem explicação, apenas por um facto trágico ou por azar, e não estamos muito preparados para lidar com isso. Claro que devemos esquecê-lo para viver sem ansiedade, mas de vez em quando é bom lembrar, pôr os pés na terra.
Afinal, esquecemos com muita facilidade que tudo aquilo que damos por suposto pode desaparecer sem explicação, apenas por um facto trágico ou por azar, e não estamos muito preparados para lidar com isso.
É habitual ver-te adaptar ao literário géneros documentais: o diário, a epístola… Como te relacionas com as tuas narradoras e personagens? Por outras palavras: porque gostas de fazer que se expressem através dessas formas?
Não tinha pensado nunca nisto, mas imagino que tem a ver com que são discursos da intimidade, são formas de narrar que permitem essa aproximação ao íntimo que numa narradora em 3ª pessoa poderia resultar excessiva, manipuladora. Mas também há que relacioná-lo com os outros factos das histórias das que estamos falando: o Diário comboio é um diário não de uma pessoa, mas de uma vila e o seu comboio que entra e sai como olho demiúrgico, no Tempo Tardade a protagonista está numa casa sozinha e relaciona-se com poucas pessoas enquanto reconstrói a história duma personagem ausente. Com esses vimes, parece necessário acudir a discursos que nos ajudem a aproximar da intimidade das pessoas.
Para quem escreve para ser lida, não era melhor escrever com ñ e entrar no circuito de livros de leitura dos liceus?
Esta pergunta não sei se é para gargalhar ou para chorar. A resposta mais óbvia é que sim, na situação em que vivemos fazer a escolha ortográfica que eu faço não é estrategicamente o melhor plano. Não fui consciente plenamente disto até à reedição do Diário comboio, o meu primeiro livro. Na altura desta publicação, não pensava nada em termos de “mercado” ou de público. Era muito jovem e estava muito entusiasmada com a publicação dum livro, a minha maior preocupação era que me lesse a minha família e não se sentisse excluída do meu universo literário. Vinte e cinco anos depois, já vejo as cousas doutra maneira. Para mim o pior nem é ter pouco público ou não entrar nas escolas, o pior é não ter referência de sistema literário, ser um pouco pária. As pessoas que escolhemos esta opção na Galiza somos poucas e quase não temos rede, a única editora que acolhe esta opção é duma associação e tem as suas próprias limitações (por muito que agradeça e admire o trabalho de Através não podemos esquecer as circunstâncias em que trabalha), não há prêmios literários e há muitas ajudas públicas às que não podes acceder. Ultimamente parece haver mais abertura, como parece acreditar o prêmio Johan Carballeira a um poemário de Eugénio Outeiro, mas acho que é ainda muito excepcional. Porém, como em outros muitos aspectos da minha vida, as escolhas fazem-se porque consideras que são justas, se não acreditasse nisto, mudaria para o ñ.
Que autoras lê Raquel Miragaia?
Esta pergunta sempre é difícil porque as minhas leituras são muito diversas tanto em géneros como em latitudes, dependendo da época estou mais entusiasmada por umas ou por outras. Por isso, vou dizer-vos quais foram as minhas últimas leituras entusiasmantes: Mapa da estría, de Andrea Nunes; O pobre de direita, de Jessé Souza; Eu son o monte, de Sara Guerrero e O cuarto de Giovanni, de James Baldwin. E todas as bandas desenhadas de Alison Bechdel.
Qual é o conto que mais gostas?
Pois se perguntas por este último livro, acho que “Fila” dedicado a Monbus, se é sobre todos os meus, escolho “De autocarro” de Em trânsito e se é da literatura geral, não posso escolher, mas lembro com muito carinho “Felicidade clandestina” de Clarice Lispector.
