Quantas línguas há na Galiza? Sobre a bagagem para a corrida linguística

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Vou tentar, num breve espaço, traçar algumas linhas no sentido de avançar na pergunta que intitula este texto: quantas línguas há na Galiza? Sem entrarmos a considerar o que é a Galiza, podemos presumir que em geral, na rua, as pessoas consideram que nela há duas línguas, a saber, o galego e o castelhano (adianto que não vão ser levadas em conta todas as línguas, que não são poucas nem elas nem as suas falantes, que se falam na Galiza e que não são nenhuma das duas nomeadas). Galego é o glossónimo mais comum, mas há também quem chama a língua “própria da Galiza” de galego-português ou de português. Se hoje esta é a perceção mais estendida também internacionalmente, a realidade é que na Espanha até não há tantos anos era mesmo corrente a gente pensar que o que hoje é chamado de galego era, na verdade, uma variedade geográfica da língua castelhana, um dialeto, chapurreado.

Sem esquecer isso, a opinião que interessa a este texto é a mais estendida: a que sustém a dualidade linguística da Galiza. Doravante, sequer para simplificar a sintaxe do texto, referir-me-ei a esta opinião como ideologia dualista. Esta, além de a mais vulgar, é também a que está presente no discurso público em todas as suas formas e âmbitos: no corpus jurídico da Comunidade Autónoma, no currículo escolar tanto estatal como não estatal, nos programas de associações culturais e organizações políticas e até nos quadros teórico-metodológicos das investigações dedicadas a assuntos relacionados com a língua ou a linguagem.

A ideia principal do presente artigo é que, sendo a recuperação linguística uma corrida de fundo, a ideologia dualista não é uma boa bagagem com que corrê-la. O transplante mecânico da ideologia dualista, do imaginário coletivo diretamente para a produção académica, tem dois efeitos principais e ambos são nocivos para a planificação de qualquer projeto com pretensões transformadoras. O primeiro é que enviesa os resultados das pesquisas, limitando as conclusões e empecendo a produção de conhecimento útil. O segundo é que, em vez de questionar a opinião popular, empenha-se em reproduzi-la, dificultando mais ainda a superação do primeiro mal. Vou assentar o meu argumentário em exemplos relativos àquele primeiro efeito.

A planificação da língua tem tradicionalmente dois grandes ramos: a planificação do status –cujo objetivo é a recuperação de falantes e de contextos para uma língua– e a planificação do corpus –elaboração e difusão de um padrão linguístico que permita, ao cabo, a recuperação do status–. O primeiro passo para a planificação é o conhecimento do campo de trabalho, que no caso da língua seria, esquematicamente: para o status, conhecer (1) que percentagens de utilização tem a língua e (2) em que contextos –geográficos, sociais, etários etc.– tem mais presença; para o corpus, conhecer a realidade dos usos linguísticos da comunidade, saber que formas linguísticas concretas são utilizadas (3) de forma geral e (4) em cada contexto. Estas quatro linhas de pesquisa requerem a combinação de ferramentas de análise quantitativa com outras qualitativas.

O estudo do status

O estudo do status tem o seu produto mais divulgado nos distintos volumes do Mapa sociolingüístico galego (MSG) elaborados pelo Seminario de Sociolingüística da Real Academia Galega (RAG), bem como outras publicações que têm aquela como fonte principal ou que continuam a sua esteira. A base do MSG é um questionário em que, sistematicamente, se reproduz a ideologia dualista de duas maneiras: quer introduzindo glossónimos nas perguntas (ex.: Onde adquiriu a sua competência em galego?), quer oferecendo uma bateria fechada de categorias para a resposta (comumente: só galego, mais galego, mais castelhano e só castelhano).

Além disto mas em estreita relação, julgo que o principal e mais grave erro do MSG é conceder credibilidade às respostas do pessoal entrevistado. Para qualquer pessoa que tenha tido um contacto minimamente extenso ou intenso com a Galiza, não será difícil imaginar inúmeras situações, em absoluto marginais, que invalidam o inquérito: crianças que sabem que os seus pais falam de maneira diferente à da escola, mas não identificam códigos diferentes; pessoas que têm uma convicção errada sobre a medida em que utilizam uma ou a outra língua… para não falar de quão castelhanizado pode estar um discurso –quão castelhano pode ser– sem deixar de ser considerado netamente galego pela maioria de habitantes da Galiza.

Julgo que o principal e mais grave erro do MSG é conceder credibilidade às respostas do pessoal entrevistado.

O estudo do corpus

Fora uma mínima série de atualizações efetuadas em 1995 e 2003, as Normas Ortográficas e Morfolóxicas do Idioma Galego (NOMIG) hoje vigentes são as mesmas que as aprovadas em 1982 e têm como principal referência o que as suas redatoras e as suas defensoras consideravam –e consideram– “a língua falada pela comunidade”. A fonte de que foram tiradas estas informações é o Atlas Lingüístico Galego (ALGa) do Instituto da Lingua Galega (ILG), um catálogo de mapas linguísticos a representar graficamente a distribuição geográfica de distintas variáveis (como é que se utiliza a língua em cada lugar).

As pessoas entrevistadas para a elaboração do ALGa respondiam ao perfil tradicional da dialetologia, isto é, de preferência homens idosos, galego-falantes e analfabetos que tivessem saído o menos possível do lugar de nascimento. Assim, a seleção de quem é que fala galego e quem não, fica na mão da pesquisadora. Este mesmo padrão seguem outras ferramentas mais atuais, nomeadamente o Corpus de Referencia do Galego Actual (CORGA) e o Tesouro Informatizado da Lingua Galega (TILG). Em ambos os casos, a ferramenta de pesquisa oferece resultados de um grande volume de textos “em língua galega”, selecionados sob uma determinada conceção do que essa tal língua é. Isto impede que se considere galego um texto que utilize a terminação -çom, como se pode comprovar fazendo a pesquisa no CORGA. Há que acrescentar ainda o problema das edições: o TILG incorpora sistematicamente textos em edições diferentes da original, oferecendo usos que não se correspondem com a forma em que foram escritos, nomeadamente em favor das opções legitimadas pelas NOMIG (hoxe onde o original diz oge ou, para colocar um exemplo canónico, Maxina onde o original diz Majina).

As pessoas entrevistadas para a elaboração do ALGa respondiam ao perfil tradicional da dialetologia, isto é, de preferência homens idosos, galego-falantes e analfabetos que tivessem saído o menos possível do lugar de nascimento.

Resultados para “teño” e “tenho” no CORGA (03/03/2023).

Problema de metodologia

Embora se tenham assinalado dois exemplos provenientes da institucionalidade linguística autonomista-oficialista, foi assim por ser estas as mais capazes de difundir as suas análises e propostas até as erigir em proposições de verdade. No entanto, são apenas algumas provas da maneira como a ideologia dualista limita o conhecimento da realidade linguística da Galiza. O problema não é –apenas– a conceção que estas elites têm do que é a “língua galega”: os mesmos males iam rondar a produção científica na Galiza sob o paradigma reintegracionista, só que oferecendo resultados diferentes.

Assumir que existe uma língua numa comunidade é necessariamente enviesar os resultados e, portanto, fracassar na planificação. Na linha do proposto por Louis-Jean Calvet no seu já clássico manual sobre La Sociolinguistique, trata-se de “sair da língua” e observar a comunidade, de não perguntar “como é a língua galega?” mas “como utilizam a linguagem as pessoas na Galiza?” para extrair as categorias do próprio corpus em vez de aplicar a ele outras pré-ideadas. Esta, acho, é uma bagagem muito mais ligeira para a corrida linguística.

Uma proposta interpretativa

Sendo que as ferramentas disponíveis para o conhecimento da realidade linguística galega –de status e corpus– não servem ao seu fim na medida que devem, as interpretações alternativas devem ser propostas pela via da observação em primeira pessoa, ou utilizando aquelas ferramentas com grande cautela e imaginação.

O conceito de língua média de Žarko Muljačić foi aplicado ao caso galego entendendo como língua alta o castelhano e como língua baixa as falas populares galegas. Com ser uma muito boa interpretação desde a ideologia dualista, obscurece todos aqueles casos assinalados acima como exemplificação dos problemas do MSG e apaga um facto fulcral como o é que numa sociedade como a galega a hibridação e a mestiçagem –para tanto, linguísticas– não são exceções, mas fenómenos fundamentais e constituintes da norma.

O conceito de língua média de Žarko Muljačić foi aplicado ao caso galego entendendo como língua alta o castelhano e como língua baixa as falas populares galegas.

Uma formulação desta mesma interpretação de fora do filtro dualista, observando a comunidade e não uma “língua” assumida, ia deitar, julgo, muita mais luz sobre a realidade linguística da que já deitou. Que lugar ocupam, na leitura muljačiana da Galiza, as variedades populares do castelhano? Como se relacionam com as variedades populares do galego? E como se relacionam as variedades populares do galego com o padrão castelhano? Se calhar, uma interpretação mais justa passa por reconhecer a unicidade referencial do castelhano padrão, que serve de fonte para completar as falas populares “castelhanas” mas também as “galegas”, se é que tal distinção faz sentido na atualidade. Melhor do que eu explica-o Mário Herrero Valeiro no seu brilhante Guerra de grafias (Através 2011, reeditado em 2022) quando diz caminharmos para “um monopólio em que a língua legítima apresenta duas variedades de importância desigual no mercado global (o Estado): a espanhola e a galega diferencialista” (p. 249).

Melhor do que eu explica-o Mário Herrero Valeiro no seu brilhante Guerra de grafias (Através 2011, reeditado em 2022) quando diz caminharmos para “um monopólio em que a língua legítima apresenta duas variedades de importância desigual no mercado global (o Estado): a espanhola e a galega diferencialista” (p. 249).

A existência de um texto normativo para o português da Galiza, de umas NOMIG capazes de captar uma relativa atenção e adquirir uma certa referencialidade, não abala em absoluto a centralidade do castelhano como modelo de uso em absolutamente todo o país. Máxime isto quando as escritoras, jornalistas, publicistas e em geral instâncias canonizadoras do campo linguístico recebem a prática totalidade da sua formação e do seu input diário naquela língua. Destarte, a reivindicação da língua perde boa parte da sua entidade e fica em grande medida esvaziada de conteúdo, toda vez que não há um corpus diferencial a reivindicar. Não se reclama a língua, reclama-se um discurso: não exigimos direitos linguísticos para poder falar/escrever num código próprio, exigimos que se nos reconheça o direito de dizer que falamos uma língua, ainda que as formas que utilizamos continuem a ser, –cada vez mais– majoritariamente, as do castelhano.

Isto dito, não se trata de que as pessoas estejamos a errar quando falamos de “língua galega”. A questão é que esse mesmo esquema não serve mais para chegar a conclusões úteis de cara à planificação do futuro. Também não se trata de derrotismo, de interpretar a centralidade do castelhano como uma batalha perdida ou este texto como um chamamento à retirada. É, antes, a identificação de um problema: o que vimos chamando de língua não funciona socialmente como uma tal língua, mas como a variedade baixa de uma comunidade cuja língua é outra. Pode observar-se a este respeito a facilidade com que na Galiza vemos o nosso próprio reflexo em análises de comunidades monolingues, como em Ce que parler veut dire de Bourdieu –como lemos o nosso nome nesse patois– ou mesmo na formulação original do conceito de diglossia por Ferguson –já recuperado para a Galiza em 1989 por Gil e Rabunhal–.

Num discurso no Centro Galego de Buenos Aires em 1952, Francisco Luís Bernárdez declarou que “nem o imperialismo castelhano do século XV nem quanto desde então se tentou durante séculos para eliminar a fala [sic] da Galiza puderam desarraigá-la”. Sendo isto relativamente verdade, é possível que a reflexão que devemos fazer seja, muito pelo contrário, que nem o nacionalismo galego do século XIX, nem quantas empresas herdaram o seu ideário, conseguiram constituir aquela fala em língua. Se a nossa conceção do que deve ser um programa emancipatório inclui necessariamente uma língua nacional, a questão consiste em decidir se há que conseguir uma ou mudar o programa.

[Este artigo foi publicado originariamente na Clara Corbelhe]