Para quem espia o espião?

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A melhor maneira de ocultar algo  é exibindo-o à vista de todos.
(Pir-i-Lampo e Auguste Dupin)

14-chinesa-andorinhasFiquei comprometido de continuar a falar sobre o eneagrama só que não me inspira muito agora focá-lo como uma temática continuada. Prometo desenvolvê-lo mais adiante. Há algo em mim que agora se opõe a tematizar demais essa questão e, em geral, qualquer questão que se apanhe de um jeito excessivamente literal. Em realidade, não gosto das abordagens lineares. Gosto mais da ondulação. Com esta ideia hoje trago uma história verídica que me aconteceu há alguns anos e que está em linha com esse movimento em ziguezague da vida pois não sempre o caminho mais curto é a linha reta. Em todo o caso não sempre chegar antes é chegar a tempo.
Gostaria de lembrar uma pequena história na que me vi envolvido no 2004, quando se celebrou um simpósio na cidade de Porto dedicado a José Marinho. Eu apresentava uma comunicação intitulada Ética, paideia e anagogia que versava sobre a perspetiva que Marinho dava à pedagogia da filosofia. Para ele havia uma eiva tanto na tradição procedente da teologia como na ciência moderna e tentava restaurar a noção de magistério espiritual e iniciação. Ele foi o filósofo português e europeu mais profundo e mais “filósofo”, não há duvida.
Pois bem, eu tinha enviado um título provisório que tratava sobre os relacionamentos dos diversos “platonismos” e o pensamento de Marinho. Algures fazia referência ao sufismo e aos platónicos da Pérsia, também aos Ishraquiyum ou filósofos orientais do sohravardismo mas depois não falei disso. As informações dos poentes eram, porém, que alguém procedente da Galiza ia falar sobre isso.
Eu devia dar a minha conferência à tarde, depois do almoço. Os palestrantes fomos convidados, não éramos muitos, e tomamos uns vinho do Porto numa salas pertencentes a um antigo edifício da Universidade. Durante mais de duas horas falamos e trocamos pareceres de diverso tipo até que chegou o momento de voltar para a sala de conferências. Eu era o primeiro a falar. No passeio até a Faculdade encontrei-me à minha beira com um dos palestrantes, um padre muito fervoroso nas suas convicções. Começamos a falar e depois de um tempo disse-me:
– Parece que vai falar um espanhol sobre as relações do pensamento de Marinho com o pensamento sufi. Que terá a ver uma cousa com a outra?
– Sim, isso parece, respondi. E sorri.
E continuamos a falar sobre diversas questões não estritamente filosóficas. Por exemplo, este homem estava muito interessado por saber quem era um acompanhante de um amigo meu, aliás o editor das obras completas de José Marinho, Jorge Croce Rivera. Não entrava dentro dos seus cânones académicos, provavelmente, um homem de grandes barbas e aparências boémias, Fritz, meio alemão nascido em Angola e que acompanhava ao seu amigo da adolescência no país africano simplesmente por interesse pessoal, sem mais assuntos.
Chegou o momento de entrar na sala e  não sei qual seria a face deste bom padre quando fui apresentado como o galego, o único “estrangeiro” ali presente, e que tanto incitava à sua curiosidade.
Durante mais de quinze minutos foi falando comigo e nunca reparou que eu podia ser esse homem que tanto o preocupava!
Uma vez Nasrudim entrou numa loja e o homem disse-lhe:
– Bom dia!
– Um momento, disse-lhe Nasrudim, o senhor já me tinha visto antes?
– Não, nunca.
– Então como sabe que sou eu?