O roubo do Códice Calistino

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Por Arturo de Nieves

A história do roubo do Códice Calistino é uma dessas metáforas com as que num futuro desejável se explicará didaticamente o incrível nível de colonização e alienação alcançado pola sociedade galega da nossa época.

I

Muitos galegos inteiramo-nos, graças a esta história, dum facto absolutamente esperpêntico, próprio do “cráneo previlegiado” do marquês de Bradomín. Disque o sacerdote encarregado do cuidado do Códice Calistino na década de 40 do séc. XX fizera apontamentos diretamente sobre a superfície do Códice; a caneta, por riba. Disque o padre também empregara fita adesiva para arranjar o velho tesouro medieval… Inacreditável. Pessoalmente dói-me até escrever que uma barbaridade assim foi algo realmente acontecido neste país.

II

Quando na prensa dos países normais (España, Inglaterra, EUA, etc.) falam no roubo empregam termos como “o roubo do século” e até parece que têm em mente uma organização criminal muito sofisticada, com trebelhos incrivelmente especializados e formação técnica de elite. Normal, estão afeitos a que nos seus países resulte difícil roubar um dos objetos com maior valor para a identidade cultural do país. Fazem-nos imaginar os ladrões do Códice como se fossem ex-agentes da CIA de altíssima preparação e –no nosso americanizado imaginário coletivo– lembramos a cena do Tom Cruise em Mission Impossible descendo por um rapel impossível a piques de se fazer com o objeto cobiçado. Bom, pois nada disso. Disque o mangante do Códice Calistino só teve de girar uma chave que alguém deixara colocada na porta que dava acesso à velha guia de peregrinagem do séc. XII, nada menos.

III

Disque a Igreja Católica, perdão: Iglesia Católica, não reconhece uma restauração que teve lugar após as barbaridades acometidas polo indivíduo que decidira incrementar a valia do Códice com a sua própria criatividade artística, caneta na destra, ‘fixo’ na sinistra.

IV

Disque a lei galega de património, inalterada desde há mais de três lustros, fica a anos luz doutras leis semelhantes no estado español e disque todos os anos se notificam dezenas de atentados contra património cultural galego, quando não roubos. Disque o Códice Calistino nem tão sequer estava assegurado e ainda há quem a isto retruca que algo assim seria muito caro… lembremos que a Cidade da Cultura se acha a poucos quilómetros da catedral de Santiago de Compostela.

V

Disque foi um milionário colecionador quem encarregou o roubo do Códice Calistino, e eu faço duas reflexões:

1. Espero que seja assim e que não se trate duma organização para quem resulte mais rentável vendê-lo por partes. Estou certo de que uma pessoa disposta a pagar tanto dinheiro por uma peça tão valiosa como o Códice Calistino é alguém ciente do seu valor, não como a Xunta ou a Iglesia Católica e que, portanto, saberá cuidá-lo melhor do que estas duas instituições juntas. Sem dúvida nenhuma. Ademais, a Iglesia Católica não deixa de ser uma entidade privada que proibia a consulta do Códice a particulares, com exceção dos ladrões e dos sacerdotes com espírito criativo, é claro, para além de ocultar informação sobre o estado real de conservação do valiosíssimo documento. Acho que é preferível para a nossa saúde mental nem ouvir falar do jeito em que a Iglesia Católica protegia o Códice da luz ou do ar…

2. De ser certa a hipótese do milionário colecionador de arte duvido imenso que este seja galego ou resida na Galiza. Do contrário peço-lhe desde aqui que monte um partido político. De ganhar a presidência da Xunta galega estaríamos diante do governante com maior consciência do valor do nosso património histórico-artístico que teve o governo galego e, quem sabe, talvez agisse em conformidade com este facto. Talvez houvesse até leis que protegessem o nosso património e talvez, só talvez, a Galiza inteira, incluída a sua esfera pública, que quiçá até existisse, se indignasse realmente após o roubo duma das peças centrais do património cultural material nacional e, quem sabe, até poderia ser que não nos víssemos condenados a aturar um ridículo e humilhante culebrón de verão como o que estamos a padecer nestes dias, já de seu tristes para nós, pobres galegos de nação.

Máis de Arturo de Nieves