Fim: A lógica da fraude

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Por Arturo de Nieves

Christian não é que fosse um homem obeso, nem tão sequer se falaria dele como alguém pançudo, mas aquela noite não fazia mais do que deostar-se diante do espelho do salão do seu fogar viguês. Levantava a sua camiseta, quase um farrapo que usava para dormir, e olhava depreciativamente as dobras do seu bandulho. Logo mirava-se ele inteiro. O cabelo, oleoso, indicando não ter sido lavado em dias. A face, coberta por uma quase imperceptível capa de suor, brilhava. Parecia estar em transe, a olhar essa visão deplorável de si mesmo durante um ou dous minutos. Finalmente, como se o seu anjo da guarda baixasse diretamente do céu para lhe zoupar uma labaçada, acordou.

Isso mesmo, que o seu anjo da guarda viera para lhe zoupar uma labaçada no meio daquela tórrida noite de verão, foi o que pensou o Christian que acontecera. Foi à cozinha, pegou um pedaço de biscoito que fizera sua mãe dous dias antes, uma cerveja do frigorífico e dirigiu-se cara o sofá do salão. Sentou, ligou o televisor e mudou algumas vezes de canal para ficar a ver um desses programas onde uma mulher objetivada como reclamo sexual incita continuamente o público a participar no concurso. Neste caso tratava-se de adivinhar uma palavra. A apresentadora esforçava-se em dar as suficientes dicas para fazer da resposta algo evidente e, como o concurso era uma fraude, o Governo espanhol obrigara a colocar uns dígitos indicativos do número real de chamadas recebidas, muito maior do declarado pola apresentadora.

Os números, minúsculos, ficavam situados no recuncho superior direito do pequeno ecrã, fora dum campo de visão centrado na figura seminua da apresentadora/objeto, que a sua vez ficava enquadrada por uma sequência frenética de luzes de cores. Mália marcar já o 545, a apresentadora não fazia mais do que urgir os telespetadores a chamarem quanto antes, pois o tempo do programa, dizia, chegava ao seu fim e, também dizia, não havia ninguém que se decidisse a realizar aquela chamada. O prémio para quem adivinhasse a palavra era uma cheia de quartos que o realizador do concurso se ocupava de amostrar profusamente.

Mas o Christian não atendia os numerinhos minúsculos, nem reparava na insultante simplicidade do concurso. Tão só podia repetir na sua mente “España, España”, pois essa era, com certeza, a palavra a adivinhar. Assim, com o passo dos minutos, o Christian ia alterando-se, até o ponto de berrar “¡España!” na solidão do seu salão. Mordia as unlhas, nervoso, e acabou por travar um dedo, o que provocou a saída dum outro berro da sua boca cheia das migalhas do ressesso biscoito; desta vez a maldição gritada fora um sonoro “¡mierda!”. Não aturava mais. “¿Pero es que la gente es imbécil? ¿Es que no se dan de cuenta de que la palabra es España?”, eram pensamentos constantemente repetidos na mente do Christian.

Finalmente acougou, sorriu e pegou o telefone. Dava sinal. Continuou a morder as unhas… “venga, venga…”, repetia. Golpeou a mesa onde repousava o telefone. Finalmente um atendedor automático apareceu ao outro lado do cabo. O seu falar metálico era muito lento, o que conseguia exasperar o Christian. Golpeou de novo a mesa, agora com mais força. “¡venga, venga, venga!”, repetia para si. E assim passavam os minutos.

Ao longo daquela noite, o Christian chamara quatro ou cinco vezes ao programa, pensando que o problema quiçá estivesse na saturação da linha. O programa acabava e já entrava o sol pola janela; um sol esplêndido, que tanto alumiava a multidão de bateias a abalar na ria de Vigo, coma a miserável cena daquele tétrico quarto. O Christian a maldizer continuamente na sua desesperação. Foi-se deitar, ainda visivelmente alterado. Como não tinha emprego, ao dia seguinte poderia dormir deica as duas ou três da tarde, ainda que quiçá ficasse no leito uma ou duas horas mais, até começar a sentir fame ou sede.

Passaram os meses e o Christian seguia sem encontrar emprego. Depois de muito meditar decidiu deixar Vigo e emigrar. À Espanha, provavelmente.

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