O limão de Chuang Tzu

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Mais vale pássaro voando que um cento na mão
José Bergamín

limao-de-chuang-tzu-fotoMais uma vez o velho Chuang Tzu se internava no bosque, silencioso e lento como um tigre dos tempos antigos. Fazia paragens no meio do caminho a contemplar as folhas outonais, a luz do entardecer entre os castanheiros centenários, a lebre súbita ou o esquilo misterioso. O seu passo era majestoso e singelo ao tempo. Elevava os seus olhos ao céu respirando com todo o seu ser. De súbito um falcão olhava-o por um instante e os seus olhos encontravam-se num momento de cumplicidade fugaz. E assim Chuang Tzu entrava no bosque rumo ao Grande Debate.

Do interior do matagal que beirava o caminho surgiria aquela tarde uma surpresa. Tratava-se de Li Yu, o jovem caçador das mil celadas que de um ágil salto se apareceu perante o velho sábio.

– Mestre, não vos incomodeis por estas formas, mas aceitai a um ignorante que precisa instruir-se num enigma.

-Mas quem está aqui! O “Pequeno Raposo” –dixo Chuang Tzu- fazendo um jogo de palavras com o seu nome, pois no dialeto da zona “Yu” significava “raposo”, “ladino”. É que agora te dedicas á caça maior? Não estaria mal, vejo que tens talento. Mas diz lá, serias capaz de vender a pele de um velho tigre?

-Não vos riais de mim, Venerável. Os meus negócios são pequenos mas dizei-me: que necessidade tem de debater com o Grande Erudito Yao Tang?

-Por que o perguntas?

-Ouvi dizer que os autênticos sábios não discutem nem se rebaixam a si mesmos com a banalidade da erudição. Aclarai-me este mistério, Mestre!

-Ainda lembro a vez em que falamos baixo o Carvalho dos Mil Invernos. Em aquele dia tínhamos acordado que a ideia de um eu e de uma personalidade eram um grande impedimento para a nossa sabedoria essencial. Lembras?

-Como não o vou recordar?

-Mas, então? Como podes fazer-me essa pergunta? É como se o tivesses esquecido completamente!

-Não compreendo.

-Tu consideras a Yao Tang como uma entidade que não merece o contato com a entidade de Chuang Tzu. Chuang Tzu é para essa forma de ver as cousas algo de mais valor que Yao Tang. Mas, na realidade, Chuang Tzu tem necessidade de Yao Tang porque Chuang Tzu não é Chuang Tzu e Yao Tang não é Yao Tang. Quando Chuang Tzu serve a Yao Tang beneficia-se Chuang Tzu mas se Yao Tang castiga a Chuang Tzu sofre Yao Tang. Tu percebes ao Grande Erudito Yao Tang mas Chuang Tzu vê ao Yao Tang que não é Yao Tang.

-Oh!, Mestre, que grande humildade! Agora compreendo!

-Não digas isso, Li Yu. Isso é uma ofensa ao teu Mestre. Não ponhas palavras vulgares à Graça do Grande Mestre Original que une a Chuang Tzu, Yao Tang e Li Yu. Não há humildade, não há arrogância. Essas palavras só servem para caçar incautos e nós aqui não precisamos armadilhas.

-Desculpai-me, Mestre. As palavras perdem-me.

-Sei-o, Pequeno Raposo. E a quem não? Mas no mesmo momento que acabavas de dizer essas palavras sentiste-te mal. Insubstancial e insatisfeito.

-É verdade.

-Mas quando não falas és um Grande Caçador. É um bom começo. Deves esperar agochado e observar. De jeito que quando estejas presente no Grande Debate não sigas só as palavras de Yao Tang ou de Chuang Tzu. Não te inclines a um lado ou a outro. Não te identifiques com as pessoas.

-Isso é difícil. Tenho certa antipatia por Yao Tang. E não suportaria que ele vencesse no Grande Debate.

-Querido Li Yu, deste jeito estás a me obrigar a ser derrotado, pois temo que faria um mal com a minha vitória. Mas será o que tenha que ser. Que importa isso?

-Vamos, pois. Já anoitece.

Roy Hodrien
Roy Hodrien

O céu estava avermelhado enquanto os mochos entoavam os seus primeiros avisos. O Pequeno Raposo saiu correndo por um atalho em direção à praça central do Grande Debate enquanto Chuang Tzu seguia parcimoniosamente o seu caminho contemplando as nuvens ensanguentadas, a velha lua acesa com os seus cabelos brancos, e o Yin misterioso da Noite. Ao chegarem à praça uma suave brisa movia os faróis e os estandartes dourados. Contemplava os camponeses, os lenhadores, os homens e mulheres amoreados em torno ao Grande Cenário. Vestiam os trajos tradicionais, como nas grandes festas, com as suas galas de cores, os seus chapéus, os seus machados cerimoniais… Algumas mulheres puseram as joias mais antigas e ancestrais. Alguns homens mostravam espadas e punhais incrustados de pedras preciosas usados nos rituais, mas de jeito discreto e contido. No momento em que Yao Tang e Chuang Tzu entraram no cenário do Grande Debate centos de lenços brancos e pretos agitavam-se no ar. Era um estranho efeito de sucessão e harmonia enquanto um leve vento agitava os faróis amarelos e os estandartes dourados. O grande mestre confuciano Chi Yi era o arbitro e só quando um silêncio sepulcral percorreu a grande praça começou a apresentação.

– Desde há seis luas começou o Grande Debate e desde então vieram pontualmente ao seu encontro o Grande Erudito Yao Tang e o Grande Mestre Chuang Tzu. Com o fim de recordar os elementos principais das teses dos nossos mestres farei uma breve síntese das mesmas, segundo o protocolo de anotação deixado pelo nosso Grande Mestre Confúcio:

Segundo Yao Tang a Forma não é separável da Realidade, de maneira que todo ser ou objeto pode e deve ser experimentado numa forma própria que lhe dá o seu sentido e substancialidade. Deste jeito toda cousa possui uma forma específica sem a qual não é possível falar da mesma. Assim uma casa é uma casa porque possui a forma de uma casa e o ser humano é um ser humano porque possui a forma de um ser humano. Estabelecer uma realidade independente ou essencial além do aparente ou da sua forma não é só absolutamente indemonstrável, mas também uma perda de tempo para a investigação do sábio.

Segundo Chuang Tzu a Realidade não pode ser reduzida à forma senão que vai muito além desta. Não é a forma da casa o que faz a casa mas a sua não-forma a que dá o seu sentido e utilidade. Do mesmo jeito não é a forma do homem a que faz ao homem porquê: que distinguiria um homem morto de um vivo? Por outro lado a realidade essencial projeta uma unidade que contempla as formas como meras convenções. Para Chuang Tzu pretender que as Formas são determinantes da Realidade seria como se o nome fosse a cousa. Mas a palavra “carro” não é um carro e a forma de uma gato não é um gato. Pois um gato com três patas continua a ser um gato e um homem monstruoso segue sendo um homem”

Não é a forma da casa o que faz a casa mas a sua não-forma a que dá o seu sentido e utilidade. Do mesmo jeito não é a forma do homem a que faz ao homem porquê: que distinguiria um homem morto de um vivo?

-Dou a palavra ao Grande Erudito Yao Tang – disse Chi Yi

-Os exemplos sobre as cousas não carecem totalmente de interesse, mas pode que a nossa argumentação deva dirigir-se àqueles aspetos de caráter humano que nos são mais necessários: a justiça, a beleza, a generosidade ou a verdade. Diz, Chuang Tzu, como poderias justificar a inexistência da forma como o determinante nestes casos? Em quê outra maneira poderíamos perceber a justiça senão através de um procedimento justo, formalmente estabelecido? Como poderíamos falar de atos generosos sem as ações visíveis da generosidade?

-Ó, Yao Tang, por um momento pensei que o teu ataque seria mais demolidor, mas vejo que começas com a guarda baixa.

-A que te estás a referir?

-Diz-me, Yao Tang, apresenta-se a injustiça, a fealdade, a ruindade ou a mentira abertamente ou precisam de roupagens?

-É óbvio que precisam de roupagens.

-E não serão essas roupagens tiradas das tão formosas palavras que tens pronunciado?

-O que queres dizer?

-Não será a maior injustiça aquela que se apresenta como justiça?

-Concordo.

-Não adotará a injustiça as formas, vestes, e maneiras da justiça do jeito mais subtil? Pode, então, a mera forma ser um indicativo da Realidade? Como distinguiríamos o justo do injusto se ambos têm a mesma forma?

– Admito que foste esperto, Chuang Tzu, mas pareces esquecer algo importante.

-De que se trata?

-Sem dúvida um é o original e outro é a cópia. E uma cópia nunca será tão perfeita como o seu original. De fato a cópia o que faz é reconhecer o valor supremo da forma. Mesmo a injustiça reconhece a forma da justiça como real.

-És muito otimista, Yao Tang, e isso tem o seu valor. Mas diz lá agora uma cousa: de onde toma a justiça mesma a sua própria forma?

-Que pretendes dizer? A justiça é a própria forma! Não a toma de nada.

-Se isso é assim, a injustiça mesma deveria voltar-se justa ao adotar a sua forma. Maravilhoso, Yao Tang. Como poderia estar tão enganado?

– Pois é aqui onde tu, e os que são como tu, errais. Se se insiste na celebração dos ritos e costumes nobres, é para levar o homem a adotar as formas justas. Deste jeito voltar-se-á justo inevitavelmente. É o seu afã de inovação e a sua rebeldia o que lhe faz assumir pretensões que o levam ao abandono do legítimo e da verdade.

– Mas essa verdade, Yao Tang, é a verdade que podes conseguir de um cavalo ou de um macaco das feiras. Já reparaste? Há pouco tempo esteve cá O Circo das Salamandras e surpreendeu-me ver como um macaco realizava todas as atividades de um homem. Até sabia rezar ajoelhado. O público estava entusiasmado. Uma mulher queria-o levar por mil moedas de ouro. Que tens a dizer, Yao Tang?

– Sempre igual, Chuang Tzu. Pareces sábio, mas onde está a tua humanidade? Mofas dos costumes e da honradez das pessoas. Mas todos podem ver que os homens não somos animais!

– Admitirias que é mais fácil mostrar a forma de um objeto que a forma de um ato justo?

– Que queres dizer?

– Digamos que é mais fácil mostrar a forma de um limão que a de uma verdade, por exemplo.

– Admito que é assim.

– Se um ato justo tem que ter sempre uma forma justa, um limão deve ter sempre a forma de um limão, não é assim?

– Evidentemente.

– Portanto um limão que não tenha a forma de um limão não pode ser um limão, não é assim?

– É indubitável.

Nesse mesmo instante Chuang Tzu tirou um limão dos pregos do seu manto. O limão estava aberto por uma grande fenda central que o separava em dous grandes lábios. O limão não parecia realmente um limão. Yao Tang estava paralisado. Depois de uns breves balbucios conseguiu falar.

– Isso… não é um limão.

– Mas é um limão!

– A forma não é de um limão, portanto não podo aceitar que seja um limão.

– Toma, apanha-o, cheira-o. Cheira a limão.

– Não, não… é um truque. Ah!

Chuang Tzu parecia gozar como uma criança enquanto o público perdera a sua solenidade. Homens e mulheres riam e comentavam a situação. O inesperado acontecia de novo, mais uma vez. Todos podiam ouvir as gargalhadas de Chuang Tzu que chorava com o riso. Yao Tang falava com Chi Yi, o árbitro confuciano, rígido, mal-humorado e exigente. Então Chi Yi se pôs em pé e pediu silêncio porque ia decretar o final do Grande Debate:

– Declaro vencedor do Grande Debate ao Grande Erudito, Yao Tang. O Grande Mestre Chuang Tzu incorreu numa intolerável ofensa à forma e os costumes da nossa nação ao introduzir um elemento não contemplado nos procedimentos. Sob caso algum fica estabelecido que um feito empírico seja um elemento provatório no debate. Portanto, declaro perdedor a Chuang Tzu por infringir as normas estabelecidas e os seus métodos formais.

Chuang Tzu voltava para o bosque com a soltura de um tigre jovem, sentia-se ligeiro e alegre. Livre e singelo. À entrada encontrava-se com Li Yu, esperando-o.

– Olá, Pequeno Raposo. Estás triste?

– Por que deveria está-lo?

– Perdi o Grande Debate.

-Digamos que Yao Tang tem a forma da Vitória e Chuang Tzu tem a forma da Derrota.

O velho mestre sorriu com uma grande cumplicidade enquanto se internava no bosque.

– Obrigado, Mestre.

– Obrigado, Li Yu.

– Mestre, algum último conselho?

– Se te oferecerem cuidar um galinheiro não aceites, Li Yu.

Pequeno Raposo sorriu e, levantando uma mão, perdeu-se entre os carvalhos centenários.

Chuang Tzu foi-se esfumando a pouco e pouco no bosque, na espessa noite muito além das formas.

[Este artigo foi publicado originariamente em Palavra Comum]