Diálogo da avó e a neta

Partilhar

Na busca do conhecimento, todos os dias algo é adquirido,
Na busca do Tao, todos os dias algo é deixado para trás.
E cada vez menos é feito
até se atingir a perfeita não ação.
Quando nada é feito, nada fica por fazer.
Domina-se o mundo, deixando as coisas seguirem o seu curso
E não interferindo.
Tao Te Ching
道德經 (Cap.48)

Imann Maliki
Imann Maliki

A anciã estava sentada sobre a rocha enquanto contemplava o fim da tarde na companhia da sua neta e o seu gato. Perto a sua casa de telhado vermelho, a árvore,  o poço…
Avó– Pensas que há alguma causa que poda explicar o fato de estarmos aqui juntas a contemplar o sol-pôr, a ouvir a passagem do vento, a termos esta conversa?
Neta– Sim, pode que não uma causa mas uma multiplicidade de causas que finalmente explicam o porquê estamos aqui.
Avó– E poderias enunciar alguma?
Neta– Alguma sim, mas todas é impossível. Por exemplo, segundo Aristóteles, haveria quatro tipos de causas. A causa eficiente, neste caso, poderia ser o nosso desejo de estarmos aqui. Este desejo, por sua vez, dá lugar ao nosso encontro.
Avó– Mas Aristóteles fala, se não me engano, de uma causa final. Qual seria a finalidade de estarmos aqui? Por outro lado, ocorresse-me pensar que a causa eficiente que apontas poderia ter, pola sua vez, outra causa. E qual seria essa causa?
Neta– Pode que a finalidade seja o estarmos aqui, sem mais considerações. Ou pode que a finalidade seja que obtenhamos mais sabedoria. Pode que haja uma finalidade que desconhecemos. Quanto à causa da causa eficiente poderia ser motivada por uma outra causa como uma sustância química que se ativa no nosso cérebro. Enfim, poderíamos continuar.

Pode que a finalidade seja o estarmos aqui, sem mais considerações. Ou pode que a finalidade seja que obtenhamos mais sabedoria. Pode que haja uma finalidade que desconhecemos. Quanto à causa da causa eficiente poderia ser motivada por uma outra causa como uma sustância química que se ativa no nosso cérebro. Enfim, poderíamos continuar.

Avó– Sim, poderíamos continuar até os princípios mesmos do universo porque para que tu e eu estejamos aqui a conversar tiveram que dar-se toda uma serie infinita (ou incomensuravelmente finita) de causas que nos fazem estar (e ser!) aqui. Em que outro filósofo nos poderíamos apoiar para dizer isto?
Neta– Foi Leibniz o que dizia que havia uma razão suficiente dentro de um infinito de causas e condições que explicavam o que acontecia. Desde este ponto de vista não existe o acaso mas uma ignorância sobre correlação dos acontecimentos.
Avó– O estranho é que agora que desenrolamos com bastante convicção a conexão das causas há uma ideia que não me abandona. A questão é como algo pode ser causa de outra cousa. Aparentemente os acontecimentos passam-se precedidos de outros anteriores aos que chamamos causas mas o problema é explicar de que jeito isso acontece.
Neta– Não entendo muito bem o que queres dizer.
Avó– Lembras aquela vez que fomos  ver A Flauta mágica?
Neta– Perfeitamente.
Avó– Então mantivemos uma conversa no café perto do teatro, acho que se chamava Papageno o café. Lembras?
Neta– Oh, claro. Lá havia um homem velho, muito simpático. Tinha aspecto de camponês. Lembro que conversamos com ele por um bom pedaço… e também como foi ridiculizado com certa ironia por um professor da universidade.
paisagem-chinesaAvó– Aquilo fez-me sentir vergonha alheia. Não podo nem lembrá-lo. Aquele velho homem era encantador. Nada resulta mais duro do que ver o uso presunçoso do conhecimento típico de muitos eruditos. Tinha sido até caçador de feras no Amazonas e lembras a sua teoria sobre a origem da vida?
Neta– Teoria é muito dizer. Ele tinha utilizado a expressão “fermentação”. Um processo material de “fermentação” do que surgiram as primeiras atividades biológicas. O professor começou a rir às escâncaras, dizendo que aquilo era acreditar na “geração espontânea”.
Avó– A isso vou. Qual é a teoria sobre a origem da vida que defendem os cientistas? Uma serie de interações do mundo físico e químico que formaram um caldo primitivo, e de aí, não se sabe muito bem como, surgiu a vida. Qual é a diferença entre o camponês e o erudito?
Neta– A diferença é que o camponês era um homem muito mais sábio, tinha sentido do humor, sabia contar histórias, brincava com as palavras e nós estávamos encantadas de conversar com ele. O professor podia ser agradável e inteligente mas no fim uma começava a inquietar-se e queria ir-se embora. Falar com ele implicava certa tensão.

A diferença é que o camponês era um homem muito mais sábio, tinha sentido do humor, sabia contar histórias, brincava com as palavras e nós estávamos encantadas de conversar com ele. O professor podia ser agradável e inteligente mas no fim uma começava a inquietar-se e queria ir-se embora. Falar com ele implicava certa tensão.

Avó– Exatamente. Em termos reais o professor não sabia muito mais que o camponês. Só cria saber mais porque assim foi adestrado. Foi ensinado a pensar que se pode dar uma descrição detalhada de relações, que se pode explicar mais especificamente as cousas tem um saber mais essencial. Poderia ser assim mas não era no seu caso porque ele achava que isso lhe permitia zombar do camponês sem compreender que compartilhavam a mesma visão, uma visão comum. O professor não compreendia que acreditava numa “geração espontânea” um pouco mais sofisticada. Pode que se aplicássemos a “Navalha de Ockham” o camponês saísse ganhando.
Neta– Mas nós gostávamos de estar com o camponês e não com o professor!
Avó– Era um camponês de um belos olhos azuis! Tinha uma voz grave e melodiosa! E a sua teoria da fermentação baseava-se na sua experiência empírica na produção de vinho!. Que melhor amigo que esse!
Neta– Avó!!!
Avó– Mas voltemos ao tema! A questão era como uma cousa pode dar lugar a outra, não é? O certo é que o que podemos comprovar é uma concorrência de fatos mas não que uma cousa seja causa inerente de outra. Quando remetemos toda uma série de causas no tempo a um suposto estado originário o problema reaparece. Como surgiu o primeiro fato que vai, por sua vez, ser causa de outros fatos? O nosso pensamento acredita que se uma questão se pode dilatar no tempo e no espaço pode explicar os saltos qualitativos melhor. Mas só é uma ilusão óptica . É como se um problema o tivéssemos mais longe. Deixa de ser tanto problema. Mas é uma ilusão perceptiva. Desde este ponto de vista o aqui e o agora é tão inexplicável como o primeiro momento do Big-Bang.
Neta– Já te contei que li um livro de Stephen Hawking onde depois de descrever todas as teorias da cosmologia moderna chega á conclusão de que possivelmente o Big Bang surgiu do nada?
Avó– É como quando um mago tira um coelho de um chapéu. No caso da ciência esse coelho ainda tarda uns quanto milhões de anos em chegar a ser mas essa potente magia do espaço-tempo ainda impressiona mais…Como o mago não se esqueceu em tanto tempo de que ia tirar um coelho!
Neta– Por certo, que o que dizes da causalidade lembra-me Hume. Ele falava da causalidade como um fato psicológico não como um fato empírico.
Avó– Trata-se de uma condição de certos estados mentais em que nos desenvolvemos. Como quando compreendemos o tempo como mera sucessão. É só uma imagem. E hoje sabemos que o tempo é dependente da velocidade que por sua vez é dependente de uma consciência que tome conta. Sem consciência como poderia haver tempo?
O gato estava sobre o colo da anciã, desajeitado sobre a suas pernas . As nuvens avermelhadas eram fios que se recolhiam no novelo do sol-pôr. A brisa era suave e cálida. Houvo um longo silêncio entre a neta e a avó.
Neta– Sabes, avó? Gosto de estar ao teu lado. Gosto de estar contigo! Isso é tudo.
Avó– Eu também, minha filha, simplesmente, isso é tudo.
A avó e a neta sorriram como fazem as mulheres, de aquela maneira que as mulheres sabem.