De artes e de artistas (III)

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Em passados artigos argumentávamos que existe umha noçom ampla de ‘arte’ que nom aponta fundamentalmente à estética, senom a umha espécie de habilidade criativa, ou perícia harmoniosa e eficaz, que se estende a muitos hábitos da vida. Também aos da acçom colectiva e, portanto, aos campos de interesse da política e dos movimentos sociais.

Em 1647, um jesuíta aragonês chamado Baltasar Gracián publicou Oráculo manual y arte de prudencia. O livro, elaborado por um católico leal ao império espanhol, gozou de popularidade por centos de anos e deu pé a leituras renovadas até os nossos dias. Por paradoxos da história, converteu-se em manual de referência dessa cultura que dum modo amplo chamamos ‘protestante’, base das relaçons humanas aceleradas e selváticas que conformam o capitalismo: um livro útil para quem concebem o mundo como um cenário hostil, inçado de enganos, ameaças e miragens, e no que apenas o indivíduo implacável e bem dotado (nom a comunidade, nem o grupo, nem o colectivo) pode subsistir e efectivar os seus planos. É por isso que, como o clássico A arte da guerra que comentávamos numha entrega anterior, virou um manual recorrente nos encontros de formaçom empresarial ou nos seminários de motivaçom para o emprendedorismo. Pode-nos dizer algo a quem, dumha óptica de esquerdas, pensamos que é possível agir em chave colectiva e pola justiça social? Quiçá umha olhada atenta, mais umha vez, nos permita aceder a relampos de lucidez. A prosa deste autor, situado em coordenadas tam distantes das nossas, volve demonstrar, pensamos, que entre o conhecimento exaustivo de um mesmo e o envolvimento colectivo nom existe na realidade contradiçom algumha. Na década de 60, em plena efervescência dos projetos rupturistas no Occidente, fora o subversivo francês Guy Debord quem pugera muita atençom em Gracián, e algum dos seus aforismos figura oportunamente nas obras que analisavam pola vez primeira a sociedade do espectáculo. “Tem-se que caminhar polos espaços do tempo cara o centro da ocasiom”, parafraseara Debord ao aragonês para defender a oportunidade de publicar as suas teses, que alarmavam a partes iguais a direita e a esquerda.

Composto por 300 aforismos numha linguagem precisa e por vezes escura, O Oráculo nom se presta a nenhum resumo. Si que se detecta em todas as suas linhas, porém, um pressuposto de fundo que nos afinca num lugar certo, numha boa perspectiva, ou num atinado ponto de partida: a humildade e o reconhecimento da própria ignoráncia, que é a atitude primeira para qualquer empresa: nenhum livro e nenhum saber, diz Gracián, captam a riqueza do mundo, e portanto nenhuma receita para a acçom é universal e intemporal. A obra oferece-se por isso ao “leitor prudente”, aquele que sabe ler sem esperar pola receita infalível, o que dialoga com o texto sem medo a se apropriar de conteúdos úteis e de rechaçar os que estimar supérfluos.

Nenhum livro e nenhum saber, diz Gracián, captam a riqueza do mundo, e portanto nenhuma receita para a acçom é universal e intemporal.

O “prudente” nom é o conservador nem o que reserva de maneira ruim as suas energias, mas o que conhece à perfeiçom todas as forças em jogo e é cauto na utilizaçom dos seus recursos. Agora que a política mediada polo mundo virtual –na sua esfera institucional e na sua expressom antagonista dos movimentos populares– virou fundamentalmente em estratégia do impacto, polarizaçom, vozerio e efectismo, sonam preciosas as palavras de Gracián sobre o actor virtuoso e sereno: “nom se apaixonar é sinal do mais elevado espírito. A sua mesma superioridade livra-o da escravitude das impressons passageiras e comuns. Nom há maior domínio que o de si mesmo.” O domínio nom é fundamentalmente umha questom de atitude, senom de conhecimento rigoroso do nosso interior: “ter umha ideia exacta de si mesmo e das suas possibilidades (…) Todos tenhem altos pensamentos de si, nomeadamente os de menos motivos. Cada um imagina a sua sorte e sonha prodígios. Tem desmesuradas esperanças, mas nada consegue na prática.”

Contra certa soberbia explícita ou velada que sói acompanhar os homens de letras, e que na nossa época histórica poderíamos entender ao intelectual esquerdista, Gracián adverte contra a torpeza do sábio e os seus perigos: “é doado enganar um sábio, porque conhece até o mais extraordinário, mas ignora o mais necessário, as cousas mais ordinárias da vida. O estudo do mais sublime nom lhes deixa espaço para o mais singelo. (…) O homem sábio tem que ser prático: nom é o mais elevado, mas si o mais precioso da vida (…) O verdadeiro saber de hoje é saber viver!”

“é doado enganar um sábio, porque conhece até o mais extraordinário, mas ignora o mais necessário, as cousas mais ordinárias da vida. O estudo do mais sublime nom lhes deixa espaço para o mais singelo. (…) O homem sábio tem que ser prático: nom é o mais elevado, mas si o mais precioso da vida (…) O verdadeiro saber de hoje é saber viver!”

Mas se em algumha cousa fala Gracián à mulher e ao homem da era tecnológica e das relaçons virtuais, é no seu exame crítico de pejas perduráveis na cultura occidental, que nos nossos dias, com as relaçons mediadas por artefactos, acadárom a dimensom de problemas massivos: o rechaço à contençom e à reserva, que deriva na conviçom de que todo deve ser dito e qualquer tema merece ser objecto de opiniom (“a reserva é a marca da inteligência. Um peito sem segredo é umha carta aberta”); a paixom por ser o centro da atençom, mesmo se esta requer exibir estridências e misérias (“alguns desejam ser conhecidos até mesmo polos seus vícios; procuram originalidade no ruim para conseguir umha fama infame. Mesmo no relativo à inteligência o excesso degenera em falar por falar”); ou o gosto polo enfrentamento e a ruptura sistemáticas, alimentado por um sentimento de dívida nom paga, e polo olvido do grande valor da generosidade (“o agradecimento nom deixa lugar ao agrávio. Saber viver é virar em prazeres o que deviam ser pesares. Cumpre mudar malevolência por confiança”).

Se formos sinceros, há umha parte da obra de Gracián que nos pode repugnar, e que reflecte com muita nitidez o pior da política que conhecemos: a desconfiança e o carácter camaleónico, as médias verdades, a dissociaçom moral de meios e fins, o gosto polo poder e a exaltaçom do indivíduo vitorioso. Há, porém, um alicerce moral que ainda pode inspirar-nos: a conviçom de que nada se pode acometer individualmente, e de que todo o importante precisa do concurso da amizade: “os amigos som o segundo ser. Todo amigo é bom e sábio para o amigo. Entre eles todo sai bem”; a defesa incondicional da discreçom: “nunca falar de si (…) É falta de cordura em quem falam e castigo para os que ouvem”; e a prevençom contra a concorrência, presente em tantas empresas colectivas: “o calor da rivalidade aviva ou ressuscita as infámias mortas, desenterra passados e antepassados trapos sujos. A concorrência inicia-se com a exposiçom de defeitos, e ajuda-se de tudo quanto pode e nom deve.”

Quiçá concordamos em que nestes tempos o retrocesso de tantas conquistas sociais se reforça e se retroalimenta por umha espécie de névoa da consciência: por crescentes dificuldades para entendermos o que acontece, por entendermo-nos entre nós e por desenharmos horizontes de futuro críveis e partilhados. Entom concordaremos também no potencial de obras como esta: chamados à prudência, isto é, a umha inteligência prática que quer olhar simultaneamente para dentro, o indivíduo, e para fora, a sociedade; porque sabe que a primeira condiçom para se conduzir num mundo hostil é pensar com claridade.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]