De artes e de artistas (II)

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Na passada semana falávamos nestas páginas da possibilidade de superar a cissom técnica-criatividade, de topar umha intersecçom entre a disciplina, o engenho e –porque nom– também a beleza; a velha acepçom da palavra ‘arte’ faria confluir todos estes sentidos e, deste ponto de vista, poderia existir umha arte da acçom colectiva. A frase “somos um povo de artistas” cobraria assi umha fondura inédita.

Para tal penetraçom, bom seria resgatar algumhas daquelas obras que, encabeçadas com o termo ‘arte’, mergulhárom nas grandes dinámicas sociais. Há mais de dous mil anos, a civilizaçom chinesa produziu umha obra que os tradutores europeus intitulárom “A arte da guerra”; visto por muitos como clássico militar, nada poderia semelhar, tristemente, mais familiar a galegas e galegos: entramos na contemporaneidade num enfrentamento sanguinhento contra os ocupantes franceses, atravessamos traumados o século XX por um conflito bélico que aqui começou em genocídio e derivou em guerra de guerrilhas; e toda oposiçom real ao status quo em douscentos anos, do movimento obreiro ao arredismo, viveu episódios violentos de maneira mais passiva ou mais activa.

Há mais de dous mil anos, a civilizaçom chinesa produziu umha obra que os tradutores europeus intitulárom “A arte da guerra”

Os tempos da violência política tenhem já passado, quanto menos no nosso contorno geográfico imediato, e porém, esta obra segue a iluminar-nos: utiliza-se habitualmente em cursos de formaçom empresarial e ilustra aliás profissionais do mundo jurídico que se formam no debate e no litígio; a política sem armas, que é (em proporçons variáveis) tanto cooperaçom como concorrência, também recorre ao seu saber quando quer despejar zonas escuras. E há verdades deste clássico milenário que nos surpreendem pola sua actualidade.

Numha das versons comentadas da obra de Sun Tzu, Thomas Cleary desvenda umha das suas revelaçons: “o paradoxo da arte da guerra reside na sua oposiçom à guerra”. Apesar de nascer dum contexto violento e de estruturas políticas marciais, o livro segue os passos do seu irmao maior, o clássico filosófico “Tao Te King”, que declara: “as armas som instrumentos do mal/ e devem de ser odiadas por todas as criaturas./ Por isso, quem segue o caminho /nom aprova o seu uso”. O cenário óptimo é o cenário que evita todo enfrentamento; e o cenário menos mau é o do enfrentamento rápido, desapaixonado, imprescindível, dos que nom se recriam permanentemente nas feridas e rancores, dos que superam a condiçom dependencial e aditiva das dinámicas de destruçom e autodestruçom. “Quando estás no meio da batalha –diz a obra de Sun Tzu– , mesmo ainda que estiveres ganhando, continuar muito tempo nela desanimará as tuas tropas e estragará o teu gume; se assedias umha cidade, esgotarás as tuas forças; se mantés o teu exército durante muito tempo em campanha, os seus suministros vam ser insuficientes.”

O cenário óptimo é o cenário que evita todo enfrentamento; e o cenário menos mau é o do enfrentamento rápido, desapaixonado, imprescindível.

Mesmo para umha política sem armas, esta é umha liçom muito poderosa. Pois todos e todas nós vivimos como a natureza mais primária da acçom colectiva –a ajuda mútua para o bem comum– é ensombrecida, quase até a desapariçom, em favor da concorrência permanente, que tem muito de dinámica cansativa e implosiva; obviamente contra o Estado, mas também, numha permanente ampliaçom dos círculos da hostilidade, contra os considerados cúmplices, logo contra os considerados tépedos ou ambíguos, e finalmente contra os aparentemente irmaos, mas no fundo julgados como maus intérpretes da doutrina fundadora (eis a recorrência dos ciclos fratricidas na esquerda).

A concorrência permanente tem muito de dinámica cansativa e implosiva; obviamente contra o Estado, mas também, numha permanente ampliaçom dos círculos da hostilidade, contra os considerados cúmplices, logo contra os considerados tépedos ou ambíguos, e finalmente contra os aparentemente irmaos, mas no fundo julgados como maus intérpretes da doutrina fundadora (eis a recorrência dos ciclos fratricidas na esquerda).

Claro que para chegarmos a essa defesa da auto-contençom, e dessa consideraçom da violência e o cisma como fenómenos envolventes e aditivos, temos que dar com outra das ideias centrais do clássico do enfrentamento: a equanimidade. Pois a acçom, ao contrário do que predicou historicamente a nossa tradiçom occidental quanto menos desde os clássicos homéricos, nom deriva do entusiasmo (literalmente, “estar tomado polos deuses”), nem portanto da fúria que movia os heróis gregos, nem tampouco da possessom selvagem (“berserker”) que fazia invencíveis os guerreiros nórdicos, senom dum tipo de vazio, para nós raramente conhecido, onde o obrar correcto deriva dum estado plenamente lúcido e sereno: “os antigos mestres –afirma Thomas Cleary– mostrárom como o homem violento e agressivo semelha implacável, mas na realidade é umha pessoa emocional.” Portanto vulnerável, caprichosa, ofuscada, ególatra e presta, como os heróis espanhóis das desastrosas guerras navais do império, a perdê-lo tudo em favor da honra e a substituir o objectivo inicial do seu combate pola glorificaçom de si mesmo, sem importar a desgraça gerada à sua volta.

Esta arte obriga por isso a um minucioso processo de introspecçom, a conhecermo-nos a nós mesmos de modo paciente e implacável, começando polo plano individual, numha atitude que na esquerda, maiormente, pareceu sempre solipsista e pouco solidária, mas que na realidade é condiçom primeira de toda lucidez no palco das dinámicas sociais. E entom, só entom, a partir daí, é quando as pessoas, e os colectivos conformados pola soma destas, podem adentrar-se no desafio do enfrentamento ou da concorrência, com o alvo ideal da “vitória sem batalha”. E neste ponto, a criatividade e o engenho deslocam a técnica, pois a condiçom do enfrentamento é tam imprevisível, polimorfa e inapreixável como o mundo, tam pródigo que sempre nos sobarda: “existem cinco notas na escala musical, mas as suas variaçons som tantas que nom podem ouvir-se. Apenas existem cinco cores básicas, mas os seus tons som tam numerosos que nom podem ver-se. Apenas há cinco gostos básicos, mas as suas variantes som tantas que nom podem ser saboreados. (…) O ortodoxo e o heterodoxo originam-se reciprocamente, como um círculo sem início nem fim; quem poderia esgotá-los?”

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]