Mafalda Pereira nasceu em Lisboa no ano 1998 especializa-se em Estudos Literários na Universidade do Porto. Em 2022, apresentou a dissertaçom “Ain’t I a Human? Escritos de prisão e o direito à palavra”, onde abordou a relaçom entre a cadeia e a escrita, dumha perspectiva que desafia muitos dos moldes académicos. Com ela falamos das possíveis pontes entre o ensino e o mundo carcerário, dos tabus que empecem este diálogo, e das vozes que escuitou dentro das prisões.
Como começou o teu interesse polo mundo das prisões?
Na verdade nom partia de nenhum conhecimento prévio. Quando comecei o meu mestrado em Porto, em 2020, adentrei-me aos poucos no mundo do diálogo interarte e nos estudos feministas. É naquela altura que começo a dar-me de conta que os meus interesses se dirigem mais para um projeto académico prático do que simplesmente teórico. Um livro que me impactou naquela altura foi “Novas cartas portuguesas”, que na ditadura fora considerado “imoral e pornográfico”, fora censurado e levara consigo um processo repressivo; e ao mesmo tempo motivara um movimento de solidariedade internacional. Também fum muito influenciada pola obra de Ana Luísa Amaral, umha poeta que teve contacto com o mundo carcerário (fijo lá oficinas de leitura), e leu a sua poesia nas prisões. Quando estava a terminar a dissertaçom, ela morreu (em agosto de 2022) e acabei por escrever a concluson em sua homenagem. Ela é umha poeta-cidadá muito movida por questões de direitos humanos. Finalmente, chego à existência dum subgénero que se chama “Prison writing”, nomeadamente através de autores do mundo anglófono, e aí descubro que há vozes de interesse que merecem ser descobertas. Assim é como vou focando o meu trabalho, até que por fim pido permisso para visitar as prisões e começo a pesquisa.
[Ao descobrir o mundo das prisons], na dimensom social, som ciente da ignoráncia que existe sobre o mundo carcerário, mais na classe média, claro, porque está fora do seu imaginário, e um bocado menos nas classes populares, porque entra dentro dum ámbito que lhe é mais familiar.
Que descobriche deste mundo?
No meu trato com a administraçom penitenciária, que se inicia precisamente no ano do Covid, reparo desde o primeiro momento que nom iam dar-me muitas facilidades devido às restrições sanitárias por causa da pandemia. Na dimensom social, som ciente da ignoráncia que existe sobre o mundo carcerário, mais na classe média, claro, porque está fora do seu imaginário, e um bocado menos nas classes populares, porque entra dentro dum ámbito que lhe é mais familiar. Mas em qualquer caso, a ignoráncia era grande, e o debate público em Portugal é escasso. Logo, no ámbito académico, reparo em que a separaçom entre o mundo universitário e o penitenciário, que em Portugal é bastante acentuado, noutros lugares nom é tam clara; refiro-me a países como a Argentina, caso que estudei na minha tese, onde existem certas pontes formativas entre dentro e fora, como é o caso das oficinas literárias que formam presas e presos.
Que traços comuns topache nos escritos de prisom?
Os escritos de prisom som muito diversos, e existe o debate sobre quais som literários e quais nom. Eu nom entrei nessa questom, nem analisei o seu valor; para mim o interesse é que tenhem um enorme valor documental, e amossam umha grande potência social. As prisons som lugares absolutamente fechados e isolados, que em geral motivam pouco interesse numha sociedade (pouca gente terá familiares ou conhecidos que saibam directamente o que é umha prisom), e através dos seus documentos chegamos a um mundo que nos é vedado. Como anedota, recordo que numha ocasiom, quando eu trabalhava com correspondência carcerária, dei-lha a ler a minha mae, e ela chorava. A figura do preso, essa pessoa que por norma geral temos categorizada como violenta, sem estudos, ligada aos bairros marginais, de súbito tem um rosto e umha história de seu.
As prisões som lugares absolutamente fechados e isolados, que em geral motivam pouco interesse numha sociedade (pouca gente terá familiares ou conhecidos que saibam directamente o que é umha prisom), e através dos seus documentos chegamos a um mundo que nos é vedado.
Como estruturache o teu trabalho?
Antes do mais, dei com umha dificuldade técnica, porque na escrita de prisom, a diferença da literatura convencional, nom existe a noçom de obra, e em muitos casos nem de autor. De maneira que, por exemplo, dim com textos de presos dos que nom tinha dado pessoal nenhum, nem sabia onde estavam na atualidade, e nesses casos, por respeito e por cautela, nom quigem ultrapassar o limite, e nom os publiquei.
À margem disto, organizei o trabalho em três blocos: no primeiro analisei a especificidade do que se chama “prison writing”; no segundo, estudei o caso de Guantánamo, conhecido internacionalmente por ser um caso especial à margem do direito, e analisei os escritos de Mouhamedo Ould Slahi; e no terceiro, fixem umha comparativa entre os casos de Portugal e Argentina. Interessava-me porque ambos eram exemplos de situações prisionais convencionais, mas a um tempo muito diferentes tanto mais que nom seja porque as prisões da América Latina som mais associadas a casos de violência física e as da Europa a uma ideia de confinamento, uma violência psicológica. Em Portugal existe investigaçom sobre o mundo penitenciário (embora nom muito conhecida fora dos meios académicos). O que nom existe de forma mais marcada é investigaçom da área dos estudos literários que se articule com os estudos de prisom e que se preocupe em compreender o papel do encarceramento nos nossos dias, nem ligaçom entre os estudos culturais e a prisom. Pola contra, na Argentina há umha tradiçom de universidades e de movimentos políticos feministas e abolicionistas ligadas aos centros penitenciários, de poetas que começárom a escrever por trás das grades… e isto acontece em parte porque a universidade está mais aberta ao mundo exterior, com presença de artistas que procuram activar reflexons políticas através de práticas artísticas. Interessou-me especialmente o caso de Liliana Cabrera, ou de Gastón Brossio, quem começou a publicar na prisom e frequentou um curso universitário, e escreveu “79. El ladrón que escribe poesía”. Isto confirmou a minha ideia de que, se as pessoas tiverem informaçom e oportunidades, acabam abrindo outros caminhos.
O que nom existe de forma mais marcada é investigaçom da área dos estudos literários que se articule com os estudos de prisom e que se preocupe em compreender o papel do encarceramento nos nossos dias, nem ligaçom entre os estudos culturais e a prisom.
Atopache elementos comuns nos textos penitenciários?
Nom levo estudando isto muitos anos, entom nom podo dar umha resposta fechada. Si que noto certas tendências, como é a tendência à autobiografia, obviamente a falar do interior da tua vida encarcerado… e no caso da Argentina, é habitual a utilizaçom do texto como denúncia. Em Portugal isso nom é assim tam frequente, porque muitos textos de escrita criativa feitos dentro das prisons som fomentados pola própria instituiçom, e claro, a liberdade nom é a mesma; domina mais bem o discurso do arrependimento, do “eu fixem isto e nom voltarei fazê-lo”.
Quais som as causas que explicam esta distáncia entre a universidade e as prisons?
Podemos abordá-lo do ponto de vista das pessoas presas que estudam, e da relaçom entre a pesquisa e os centros penitenciários. Do primeiro ponto de vista, na Europa, o mundo académico tem muita tendência a fazer as cousas online, e isto tem uns limites grandes, acho. Pois o contacto directo com o professor perde-se, e pensemos que o valor duns estudos nom é apenas ter um diploma académico, senom as pessoas que fam parte do mundo académico terem contacto com esta gente, abrindo novas possibilidades. Logo, do ponto de vista da investigaçom, se houvesse universidades realmente preocupadas com as prisons, e com o que os presos fam nelas, muitos recursos culturais seriam conservados. Refiro-me por exemplo aos próprios textos da prisom; se nom houver ninguém que os conserve e os arquive, e que logo os socialize, como acedemos a eles? A mim inspirou-me um autor argentino, Juan Pablo Parchuc, que estudou os escritos de prisom, e graças ao seu trabalho e o de outros membros do seu grupo de investigaçom tivemos acesso a muitos textos escritos por pessoas encarceradas, mas também a leituras críticas sobre eles. Recordo que quando eu visitava a prisom para me interessar polos escritos dos presos, estes ficavam contentes, mas ao mesmo tempo perguntavam: e por que esta rapariga está interessada no que fazemos? Esta surpresa deles deve-se à falta de contacto, e à falta de trabalhos práticos pola nossa parte.
Que acolhida tivo o teu trabalho, e que dimensom social pretendes dar-lhe?
No académico foi muito bem recebido e qualificado, para além de ser avaliado, tivem também a ocasiom de dar aulas em Porto para estrangeiros onde tratamos a questom do ‘prison writing’, e o alunado, chegado de países diversos, como os USA ou a Bélgica, mostrou muito interesse. A minha intençom é sempre dar umha direcçom prática ao que fago. Por exemplo, agora estou para iniciar com uns amigos umhas oficinas de teatro num reformatório em Porto, trabalhando textos de Ana Luísa Amaral. O meu sonho é contribuir para a criaçom de centros universitários presenciais dentro das prisons, ir além dumha universidade que em alguns casos (nom em todos, é óbvio) vira numha elite podre afastada da sociedade, como um pedestal. Aliás, acho que se as humanidades estám em crise, se tenhem tantos problemas de financiamento, temos que demonstrar que som fundamentais, que podem ser financiadas, mas para isso temos que dar exemplos da sua utilidade, sempre inútil do ponto de vista do capitalismo. Ou seja, da sua imprescindibilidade para a cidadania.
Já para acabar: depois de levares anos relacionada com o mundo penitenciário, pensas que continua a dominar o tabu sobre o mundo carcerário na sociedade portuguesa?
Como cidadá e pessoa estudiosa, eu vejo dous pontos de vista: um mais ligado à esquerda, que insiste no nível de impunidade das classes altas, e particularmente dos corruptos, ante a prisom, que pune as classes populares; e um discurso mais ligado à extrema direita, punitivista, que pede mais dureza em geral. Mas o debate sobre a natureza da prisom é muito escasso; certo que em Lisboa existe um colectivo abolicionista, o que de por si é bom, mas o seu alcanço é limitado, e nom dá superado essa polaridade esquerda-direita. Eu vejo chave que exista discussom pública sobre a pertinência da ideia de prisom, e do seu inerente paradoxo: como podemos querer reabilitar ou reinserir pessoas na sociedade através do seu isolamento? A taxas de reincidência espelham muito bem isto. Mais do que pensar em quem foi ou nom foi punido ( dentro de um sistema penitenciário que nom tem recursos financeiros nem humanos para empreender um verdadeiro e sincero trabalho de reinserçom social) talvez seja mais promissor imaginarmos novas maneiras de lidar com o crime, novas formas reeducaçom, sem o recurso ao isolamento e à segregaçom social.
[Esta entrevista foi publicada originariamente no galizalivre.com]