Imaginemos um encontro de pessoas, reunidas com o propósito de deliberar e resolver. Imaginemos -isto nom importa – que a reuniom é familiar, ou vizinhal, ou política, ou laboral. Figuremo-nos que o espaço é pequeno e inconfortável, sem janelas abertas ao exterior, de maneira que favorece o ensimismamento e dificulta o respiro dos amplos horizontes; suponhamos que todas as pessoas ali congregadas partilham um estado psicológico sombrio, marcado pola incerteza e o temor; imaginemos também que a motivaçom de cada umha delas é antes atopar umha explicaçom, umha decisom, um entorno, que forneçam seguridade (ideológica ou mental), mais do que descobrir umha verdade.
Suponhamos que, na hora de debater e decidir, estes condicionamentos imponhem condutas. Ao falarem, as pessoas recorrem a um tom de voz alto e crispado; nom respeitam as quendas, e cada intervençom orienta-se a julgar outros indivíduos antes que a considerar pontos de vista; os mais agressivos e mais desejosos de poder sentem-se a vontade, e logo se decatam de que subir o tom, incrementar a tensom e as desqualificaçons, leva a ganhar siareiros e a dissuadir oponhentes; aquelas pessoas mais incapazes para a violência detetam que destacar os abusos que sofrem e a sua condiçom de vítimas é o melhor recurso para captar atençom, ganhar legitimidade e desabafar; finalmente, quem se sentem irritados ante qualquer destas duas dinámicas, optam por sair da sala ou permanecer em silêncio. As decisons tomadas por maiorias exíguas, a acumulaçom de descontentamentos, rancores e frustraçons, som o resultado desta combinaçom fatal: os que agridem, os que se vitimizam e os que fogem, todos eles congregados num espaço sofocante.
Este espaço sofocante é-nos familiar. Nom é, obviamente, um espaço físico, senom um ambiente, ou um estado de espírito. Domina o nosso mundo em ocidente desde há bem pouco; originou-se há menos de duas décadas numha nova realidade virtual que ainda nos custa gerir com sensatez, e que os estudiosos da matéria chamárom “cámara de ecos”. Os comportamentos germolados nesta convivência através de ecrás invadem aos poucos a vida material, as interaçons de carne e osso, fazendo mais virulenta umha realidade laboral e vizinhal de vínculos frágeis, quase de cristal; por isso o dia a dia de cada um de nós, público e privado, inça-se de grandes e pequenas desavinças, o que um filósofo chamara premonitoriamente “a guerra civil molecular”: ‘bloqueios’ e divórcios, demandas e cissons, ‘ghosting’ e abandonos, injúrias e ofensas, rancores e dívidas nom retribuídas. A sociedade tradicional galega da que procedemos, que fora conhecida e tam ridiculizada polo seu gosto polo pleito, desqualificada polas suas brigas mesquinhas e xenreiras, jamais alcançou este nível de corrosom; pois se mantinha um nível mui alto de tensons e intensos ódios locais, estes jamais podiam romper a baralha e finiquitar o contrato coletivo que fundava as comunidades.
Procedemos dumha tradiçom apaixonada por discutir, mas absolutamente torpe na arte de debater. A discussom (ainda emascarada de política) envolve pessoas, o debate envolve ideias; a discussom procura a vitória, o debate procura a verdade.
Um dos tópicos mais mentireiros sobre o independentismo e a esquerda, no que nós mesmos temos acreditado, é o que diz que estes movimentos gostam enormemente do debate, frente umha direita muito mais pragmática e resolutiva, capaz de efectivar. Nom é certo. Procedemos dumha tradiçom apaixonada pola discussom, mas absolutamente torpe no debate. A discussom envolve pessoas, o debate envolve ideias; a discussom procura a vitória, o debate procura a verdade; a discussom fecha-nos, o debate abre-nos. O historiador británico Eric Hobsbawm, desde o marxismo, chamou a atençom de como com Lenin se inaugurara umha forma de polémica política que recorria sistematicamente à aldragem e a ridiculizaçom do oponhente; esse tom temos herdado, para trazê-lo a umha sociedade tecnológica onde o desacordo e o isolamento som a norma, e onde perdemos, entre outras, as habilidades primárias do falar cara a cara, do diverger respeitando normas e do conviver com distantes e adversários.
Na língua galega, segundo o dicionário Estraviz, a palavra “lucidez” tem várias acepçons: significa “brilho e claridade”; trata-se aliás dumha condiçom inteletual, que aparece na acepçom de “clareza de raciocínio”; mas também ao mesmo tempo emocional, como se recolhe na seguinte definiçom: “fase de regresso a um pensamento normal, após um período de confusom mental ou de delírio.” É por isso que se tem dito acertadamente que, para redigirem umha constituiçom, as pessoas devessem estar tranquilas, isto é, lúcidas, isto é, serenas e capazes de julgarem com agudeza e transparência no turbilhom das grandes paixons ideológicas. Ainda estamos longe de activarmos um processo constituinte para umha República galega. Mas deveríamos estar em condiçons, num mar de discórdia, de pôr a andar lucidamente as organizaçons e instituiçons, grandes e pequenas, que nos vam levar a ele.
[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]