Discernir

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No dicionário Estraviz, a palavra “discernir” aparece definida como “conhecer distintamente; perceber claro com qualquer dos sentidos; apreciar, distinguir”; também como “estabelecer diferença; separar, distinguir”; e mesmo como “apreciar, medir”. É um verbo pouco utilizado em galego, e na consulta online deste dicionário, a palavra aparece bem menos pesquisada do que outras com as que a podemos relacionar figuradamente, como “alviscar” ou “enxergar”.

A utilizaçom das palavras fala-nos dos valores e práticas dum tempo; como do nosso vocabulário quotidiano e político quase desapareceram termos como “nobreza”, “lealdade” ou “sobriedade”. O discernimento vai na direçom contrária da conduta dominante.

Na publicidade capitalista, nas redes sociais ou nos noticiários, nom há categorias de bom, mau, excelso ou péssimo, senom conjuntos caóticos e cambiantes de elementos heterogéneos valorados apenas polo impato que produzem, isto é, polo dinheiro que generam; no território capitalista, nom há espaços sagrados e profaos, senom um fluxo continuado de nom lugares suscetíveis de virarem -pola razom que for – rendíveis; no tempo capitalista, nom há diferença entre contemplaçom e açom (“otium” e “neg-otium”) senom um todo ininterrupto de movimento ansioso a nengures facilitado polos dispositivos tecnológicos. O discernir, o hierarquizar, o “considerar” (etimologicamente, examinar as estrelas, quer dizer, atender vagarosamente o todo para decidir) interromperiam este fluxo de confusom, e nom som portanto bem vindos.

Mas, que acontece na política radical? Umha legenda soberba e desafortunada proclamava: “independência para mudá-lo todo”. A primeira pergunta deveria ser: temos que mudá-lo todo?; e se nos adentrarmos por esse caminho: que se inclui nesse todo? Ainda se fôssemos tam ousados para afirmar que todo deve ser mudado, poderemos concluir facilmente que nom somos quem de fazê-lo. Nem as nossas energias como indivíduos isolados, nem os nossos alcanços inteletuais, nem tam sequer os potenciais dum movimento social organizado, por potente que for, som quem de tal cousa. Algumhas revoluçons triunfantes, como alguns movimentos rupturistas de sucesso, percebêrom de maneira mui sensata que umha sociedade desejável passava por transformar e conservar. Os galeguistas de há cem anos entendêrom isto mui bem.

Os estados emocionais abatidos e derrotistas, típicos de realidades coloniais, mui frequentemente se acompanham de enunciaçons confusas de caminhos e objectivos. Como independentistas, nom devêssemos postergar a operaçom humilde e aguda do discernimento: isto é, como diz o dicionário, de estabelecer diferença, separar, distinguir. Que é aquilo que devemos fazer? E tam importante como o anterior: que nos é dado fazer? Se vivemos na humildade e conhecemos os limites, tam deostados na híper-atividade mercantil, concluiremos que serám mais numerosas as empresas que descartaremos do que as tarefas nas que nos imos empenhar. Estas devem ser poucas, inequívocas e executadas com esmero.

Cabe-nos espalhar razoadamente o objectivo: a justiça e a necessidade dumha República galega, e expressá-la com a máxima constáncia e claridade; para isto precisa-se um movimento organizado livre de ambiguidade. Quem militamos numha ideia de claridade -a independência nacional – nom podemos militar na confusom e alimentar sucedáneos programáticos.

Cabe-nos também potenciar os seus valores: encarnar -na medida em que o permitem a ignorácia e a torpeza humanas – a justiça desse objectivo na justiça com a que se rege o nosso movimento. As organizaçons e estruturas arredistas devessem alimentar no seu funcionamento as virtudes dumha comunidade que coopera, que escuita e debate, que reprime as pulsons destrutivas e potencia o melhor desempenho dos seus membros, que sabe ser contundente sem ser histérica, que conspira mas nom intriga. Como qualquer participante de longo termo em processos coletivos conhece, este norte aparentemente tam modesto precisa na realidade um exercício de virtuosismo tal que só excepcionalmente encontramos nos movimentos populares.

Cabe-nos, finalmente, ser práticos: as transformaçons fundas começam em núcleos bem organizados (ainda que força destes logo potencie atitudes individuais afirmativas que sobardam as organizaçons), e estes alimentam-se dum talante vigoroso e saudável, nunca dumha vivência morbosa e vitimista. As práticas falsamente terapêuticas do laio, da queixa permanente polo mal que nos tratam, ou da ensonhaçom do que “deveria ser” e do que “haveria que fazer” sem o concurso de planos e esforços concretos, som o grosso da equipagem de misérias da que nos livrar, para bem da nossa saúde pessoal e coletiva.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]