Há pouco mais de cinco anos, o galizalivre.com publicava umha resenha sobre a grande figura do galeguismo político do passado século, Daniel Castelao. Hoje* que se cumprem 75 anos do seu passamento, e a sua figura, minimizada no ensino e na mídia segue a ser desconhecida por parte do povo, recuperamos esta reflexom de um dos nossos redatores.
Nas páginas d’A Fouce, os arredistas chamam o Partido Galeguista ‘Partido dos Bombos Mútuos’. Os militantes da Pondal criticam a prática, mui comum entre intelectuais, das louvanças recíprocas como forma de auto-promoçom pessoal. Preocupados com as suas carreiras antes que com as exigências colectivas, os galeguistas adiam sine die a luita pola República galega: “n’A Nossa Terra diz-se que o partido luitará pola grandeza de Hespanha, pola regeneraçom da República e ao final de todo pola liberdade da Galiza. Ah, malditos! Ao fim tirastes a careta.”
O tom é sempre mui duro e parece nom deter-se ante nada. Quando a direita republicana envia ao exílio Alexandre Bóveda e Daniel Castelao, A Fouce questiona em editorial o discurso da oficialidade galeguista. “Nom se trata de outra cousa que de umha singela questom de traslado”, que terám que afrontar com normalidade quem escolhérom a profisom funcionarial. “Falar de desterrados e empenhar-se em olhar mártires neste assunto é o colmo da brandura, denuncia umha pequenez moral tam grande que quase incapacita”. Para os arredistas “deve observar-se como princípio moral político a nom dependência económica com o Estado opressor baixo nenhuma forma ou aspecto que puider menoscabar a liberdade individual. Um nacionalista tem que repudiar todo o que signifique dependência com o Estado espanhol.” E se do que se trata é de amolecer a crítica polo prestígio dos criticados, os arredistas negam-se: Castelao é umha grande figura da arte, mas também “um político cheio de medos, de inseguridades, falto de firmeza e de afirmaçons categóricas.”
Oito décadas mais tarde, cumpre perguntar-se se os arredistas levavam razom. Os seus juízos tenhem-se apresentado como produto da visom exaltada do emigrante, alheio à realidade da Terra. Porém, uns anos antes, no interior do próprio galeguismo, a correspondência revela realidades de interesse: “o Risco está algo atado -diz Antom Vilar Ponte a Fermín Penzol durante a ditadura de Primo de Rivera-, porque como som tam bárbaros os que mandam, teme que o deixem sem o seu único meio de vida: a cátedra. O Castelao, polas suas ataduras à vaga burocrática de Estatística, ocorre-lhe cousa semelhante.” E até um galeguista tam moderado como o jovem Rafael Dieste chamava a atençom na imprensa sobre o carácter vacilante do movimento: “o nosso galeguismo medra palente e esgalichado no fundo sombrio de seminários eruditos.” Aliás “um dos erros que ao nosso juízo cometeu o galeguismo foi o de ir podando do seu ideário todo aquilo que puidera fazer desconfiar os desconfiados e temer aos medonhentos. Pensou-se deste jeito fazer umha juntança mais grande e resultou mais desmedrada.”
Pouco depois, a extrema direita espanhola demonstrou o que estava disposta a respeitar a timidez galega: liquidou um Estatuto nom nato, perseguiu a língua e a cultura, proibiu organizaçons, assassinou e encarcerou. No exílio, e segundo relata Castelao, a esquerda hispana bloqueou quanto puido as instituiçons galegas e recuncou numha incompreensom profunda, aparentemente incurável, da nossa identidade. Redondeando a desfeita, na exausta Galiza interior, umha promoçom de militantes educados no monocultivo dos livros abandonou a luita política e o próprio ideário nacionalista. Os arredistas levavam razom: o gradualismo nom favorece a toleráncia do inimigo, nom garante a empatia do adversário, e tampouco forja activistas resistentes.
Resulta tentador aplaudir incondicionalmente os nossos antecessores na Argentina. E sem embargo, um contra argumento, muito mais que um matiz, deve ser levado em conta: moderados como Bóveda ou Vítor Casas fôrom fusilados e enfrentárom a morte com grande dignidade; e Castelao, que na ditadura de Primo aparecia a olhos de Vilar Ponte como hesitante por causa de dependências laborais, enfrenta um calvário no exílio por umha lealdade inquebrantável ao ideal. Político, artista popular, teórico, consome os anos finais da sua vida num combate surdo contra a desorganizaçom e pola memória da causa galega. O povo, que sempre o estimara e respeitara, agora venera-o. As suas obras fórom lidas e relidas, as suas láminas celebradas; a sua despedida massiva na Argentina foi seguida dum recebimento digno e combativo na chegada a Bonaval. Sem nenhum exagero, Blanco Amor afirmou na sua morte: “ninguém na nossa Terra acadou semelhante unanimidade de amor. Queriam-no, ainda que caladamente, até os seus inimigos políticos. Outros nom os tivo.” Numha naçom de cépticos, Castelao ergue um estado de ánimo infrequente, emocionado e cheio de esperanças.
Julgamos as pessoas polo programa político que abraçam e ignoramos assim a maior parte do seu ser. Os nossos devanceiros d’A Fouce faziam o mesmo, e desse modo ignoravam ou malinterpretavam parte da potência daquele galeguismo. Havia um fundo de virtude que tivo enorme transcendência histórica.
Virtude? Em contextos de pragmatismo ruim, como o galego, a palavra tem muito de incómodo e impopular, inclusive no movimento político. Parece um chamado ao dever incómodo, a um comportamento intachável que pode suscitar admiraçom mas, ao cabo, nom leva a nengures. O sentido pejorativo que acadou a palavra ‘purismo’ defende o mesmo ponto de vista. Descartado o bom por impossível, a indefensom aprendida galaica valorizou o mal menor como umha forma de sabedoria: “entre pau e pau o lombo descansa”, diz o nosso refraneiro mais indigno. E como advertência contra as grandes empresas, o dito popular sentença: “os valentes morrem na guerra.” Até um galego tam enteiro como Ben-Cho-Sey incorria nesta ideia ao enteirar-se, traumatizado, da execuçom de Bóveda: “se na Galiza houvesse homens conscientes abondava a morte de Bóveda para erguerem-se até as pedras (…) Ele que pujo toda a sua fe no Rexurdimento da Galiza vai dar a sua vida num sacrifício inútil (…) estes escravos indecentes e covardes nom merecem que por eles se verta nem umha pinga de sangue generosa de homem tam nobre.”
Nos momentos essenciais, ainda nas coordenadas ordeiras da pequena burguesia, Castelao demonstrou ser virtuoso. Praticou em circunstáncias extremas a virtude no seu sentido literal: “disposiçom constante do espírito que nos induz a exercer o bem e a evitar o mal.” Mas também foi quem, e fijo-o como poucos, de utilizar a virtude na outra acepçom que regista o dicionário: “qualidade própria para produzir certos e determinados resultados. Propriedade, eficácia.” Virtude é em certo sentido sinónimo de poder, entendido como habelência para operar mudanças. Na nossa cultura popular a “mulher de virtude” era a curandeira, isto é, a que sandava.
[*Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com o passado 07/01/2025]