Tabernas de onte e hoje

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Qualquer taberna das zonas despovoadas do interior galego reúne um público semelhante: homens, normalmente velhos que alternam a charla sobre o dia a dia das paróquias com comentários pontuais sobre o que acontece polo mundo, segundo o narra a televisom por trás das conversas. O falar é lento e continuado (quase nom se interrompem para mirar o móbil, que é um pequeno aparelho de botons); o tom é triste e malumorado (mesmo se o registo é humorístico); as falas som agressivas; as comparaçons, contínuas. O bom dos velhos tempos esmoreceu, os honrados perdem, os vividores ganham; e se um afim triunfou (vizinho, amigo ou parente), e utilizou para tal cousa as más artes, fijo bem; neste mundo há que usar as armas que se tenhem.

Vem marchar a sua descendência e cair as aldeias a pedaços com o coraçom partido. Nunca se viviu tanto e tam bem, nunca se andou nestes veículos, nunca se comeu assi, nunca se desfrutou de bens materiais como os que temos; mas tampouco nunca se viu desabar deste jeito (mesmo fisicamente) as casas, as terras, as paisagens e os recordos de geraçons que se perdem no tempo. Ainda que se empuxou os filhos a triunfarem fora, luitando no mercado dos títulos universitários e, quando se fam maduros, no da acumulaçom dos bens patrimoniais urbanos, o sabor é agredoce. Como acontece com aquelas pessoas que abandonam a língua e mesmo eliminam o sotaque, a sensaçom de logro sempre é escurecida por umha sombra de má consciência.

Num ponto acertam de cheio: nem políticos, nem capitalistas, nem gentes da cultura, nem instituiçons educativas, nem elites culturais (o poder espanhol em pleno) puxérom energias e recursos para que isto fosse um lugar vivo e habitável; sabem melhor que ninguém que a imensa maioria de chamados em favor da vida no rural estám feitos, paradoxalmente, por pessoas que vivem nas cidades. Noutro ponto auto-enganam-se: sabem (ainda que nom dim) que os ambientes depressivos, queixosos, reticentes, som o melhor campo de cultivo para redes clientelares, e para dissuadir qualquer próprio ou alheio com vontade de mudar as cousas. O desabafo, a denúncia no parladoiro privado e a atribuiçom de responsabilidades a terceiros som a forma que sempre toma a exculpaçom da própria inércia destrutiva. “Na terra dos lobos, ouvea coma eles”, diz o nosso velho refrám. A sentença guiou milhares de compatriotas na emigraçom, e é também a lei de ferro com a que as pequenas comunidades goram as formas distintas de viver e de fazer.


Sem territórios permanentes, sem vínculos vizinhais nem profissionais nem familiares, as tabernas virárom virtuais e o velho parladoiro político arredor das bebidas mudou para a rede. A nossa ‘taberna’ em 2024 é o foro virtual. Nele encontramo-nos (dito do modo mais genérico possível) as pessoas leais à causa da Galiza; nom partilhamos mundos físicos nem tempos demasiado tempo para vermo-nos, assi que coincidimos nesse vácuo sem lugar nem tempo, abrindo ocos nas nossas vidas apressadas. Em aparência, é um mundo radicalmente diferente ao foro de carne e osso no que socializárom os galegos (as galegas, em muita menor medida) nos últimos cem anos, a velha taberna que tanto arrepiava os primeiros galeguistas e os militantes libertários, mas que finalmente quase toda a esquerda assumiu como mais um espaço para o debate político. A “taberna” de hoje está compartimentada em tribos políticas mui estritas, há mais vínculos de ideias que de vicindade, os debates com sofisticada terminologia universitária marcam a pauta, e a legitimidade das propostas basea-se mais na agudeza e engenho do que se formula, do que na experiência do que escreve. Mas fora destas distáncias que nos arredam, há na verdade tanta diferença?

Mesmo no nosso mundo fugaz e de referências geográficas oscilantes, continuamos a precisar o vínculo e nom nos levamos mui bem com o silêncio. Ainda em tempos de auge de terápias, precisamos partilhar as nossas preocupaçons privadas (que, em grande medida, derivam de problemas públicos, e som ao cabo preocupaçons políticas). Como os nossos velhos pessimistas e resignados, que por vezes julgamos com ar de superioridade, encontramo-nos mais facilmente na queixa, e mesmo na maledicência, que na proposta construtiva ou na celebraçom do meritório ou do fermoso. Como o rural agonizante, sem perspectivas cercanas de regeneraçom, a medida que aumenta a nossa sensaçom de impotência, de termos poucos recursos para enfrentar o poder que decide de verdade, viramos mais retóricos e mais furiosos; procuramos mais pequenos inimigos, e fazemo-nos mais indiferentes aos pequenos resortes de poder que ainda temos para mudar o que nos é mais querido e mais cercano. E como os tertulianos tabernários dos que falamos, recorremos habilmente ao nevoeiro das culpas externas para tapar o muito que, individualmente, ainda estamos chamados a fazer.

A superaçom das taras e vícios é matéria da ética, e portanto, dos trabalhos pessoais que cada quem estiver disposto a fazer para se polir (os poderes que pretendêrom fazer-se cargo da limpeza moral do cidadao dérom resultados espantosos); mas o potenciamento de espaços comuns saudáveis é umha tarefa colectiva que nos interpela, como chamou o independentismo há duas décadas a constituir o movimento dos centros sociais, no que quiçá fosse a nossa iniciativa mais abrangente e exitosa. Físicos ou virtuais, nom podemos viver sem vínculos; abrumados por um mundo que vira mais e mais hostil (com guerra às portas, desfeita ecológica e a decadência da Galiza mui avançada), necessitamos o desabafo. Mas este nom tem porque ser necessariamente destrutivo: construir e cooperar, sachar e pensar, cuidar e escrever, restaurar e conservar. Um esforço tam grande como essa tristura que parece invadi-lo todo.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]