Bahodine de Bokhara

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Os direitos que outros têm sobre ti: lembra-te deles.
Os direitos que tu tens sobre outros: esquece-os.
Sayedna Ali

Al Khadir, o verde.
Al Khadir, o verde.

O sábio contemporâneo Idries Shah (1924-1996) foi o grande introdutor em Ocidente da sabedoria sufi. Destaca especialmente na divulgação de muito material que durante centos de anos foi de uso corrente entre os dervixes, aqueles que se dedicaram à procura da verdade fora das instituições académicas e que foram a base intelectual, popular e vital do mundo islâmico. Em contraposição às formas mais escolásticas o sufismo promove a auto-compreensão e o aprimoramento pessoal por uma variedade de métodos que implicam um conhecimento psicológico profundo. Tanto as bases do condicionamento como os aspetos, que em pleno século XX, foram desenvolvidos por correntes como a psicanálise junguiana, foram motivo de exposição de autores da altura intelectual de Al-Ghazali de Pérsia ou Ibn Arabi de Múrcia, só que oitocentos anos antes. Um dos grandes filósofo que deu lugar a importantes correntes na Europa e influenciou decisivamente a cultura ocidental foi o mestre de Averróis, Ibn Tufail (S.XII), cujo livro Hayy ibn Yaqzan (Vivente, filho do Vigilante) foi traduzido no século XVII na Europa com o título de O filósofo autodidato. O livro de Samar Attar, The vital roots of European Enlightenment fala de estas relações, dos vínculos com esta sabedoria e como determinou parte de um harmónico crucial na cultura europeia, fermento que já tinha sido iniciado na Renascença. Este trabalho tinha várias frentes, por dizê-lo assim, a Ocidente e a Oriente. No Ocidente a figura mais destacada e com uma função sem paralelo na história foi Muhyi al-Din Ibn Arabi. No Oriente destaca uma escola de sabedoria ligada a uma tradição que se situa originariamente no Khoração, na Pérsia. São conhecidos como Os Desenhadores.

Em contraposição às formas mais escolásticas o sufismo promove a auto-compreensão e o aprimoramento pessoal por uma variedade de métodos que implicam um conhecimento psicológico profundo. Tanto as bases do condicionamento como os aspetos, que em pleno século XX, foram desenvolvidos por correntes como a psicanálise junguiana, foram motivo de exposição de autores da altura intelectual de Al-Ghazali de Pérsia ou Ibn Arabi de Múrcia, só que oitocentos anos antes.

Outro elemento, também da Pérsia e que, ainda pertencendo à mesma tradição, destacou pola sua precocidade e genialidade filosófica é a figura de Shahab al-Din Suhrawardi (executado por apostasia aos 39 anos), quem restaurou o saber dos antigos filósofos presocráticos, a sabedoria zoroastriana e deu à filosofia o lugar próprio do que tinha sido afastada polos filósofos meramente especulativos tanto a Oriente como a Ocidente. roots-of-european-enlightenmentSuhrawardi reivindicava as figuras de Sócrates, Platão, Empédocles ou Pitágoras como parte de uma mesma linha iniciática e defende, contra teólogos e filósofos racionalistas, a direta realização da “natureza perfeita”, do “conhece-te a ti mesmo” délfico através do próprio guia interior (o que em Sócrates viria a ser o seu daímôn), verdadeiro sentido de toda religião original cujas verdades não se revelam a partir de uma aderência externa a ritos, formas ou dogmas mas a uma realização superior da própria compreensão. A influência de Suhrawardi e Ibn Arabi são evidentes na Renascença italiana. Um dos seus mais lúcidos representantes será Marcilio Ficino, mestre de Pico della Mirandolla, quem deu lugar à escola platónica de Florência. Tradutor de Platão, introduziu as questões do hermetismo e a alquimia, herdeiro dos autores judeus e muçulmanos, que tratavam estas ciências como vias de acceso ao próprio ser, à gnose interior. Boa parte da história moderna que se deu posteriormente foi uma luita contra esta gnose. Por um lado a religião, convertida num instrumento endurecido, dogmático, carente de visão, caridade e fé real. Por outro as ideologias modernas, incluídas ciências e técnicas, demasiado obcecadas no progresso meramente material, tratando a natureza e ao ser humano mesmo como um objeto mais, sem mais compreensão, e precipitando a funda crise de sentido e valores nos que adoece o mundo contemporâneo. Por isso noutro texto anterior falei de colonização interior da sociedade europeia.

Por um lado a religião, convertida num instrumento endurecido, dogmático, carente de visão, caridade e fé real. Por outro as ideologias modernas, incluídas ciências e técnicas, demasiado obcecadas no progresso meramente material, tratando a natureza e ao ser humano mesmo como um objeto mais, sem mais compreensão, e precipitando a funda crise de sentido e valores nos que adoece o mundo contemporâneo.

As notas de brocha gorda com as que introduzi este texto são para mostrar uma serie de fios ocultos aos saberes convencionais dos livros de texto, e dos que os eruditos pouco sabem ou não querem saber mas que são os alicerces de uma atividade viva que chega até os nossos dias. É importante ter em conta que os fios históricos e académicos, em forma de livros e outras formas convencionais são só uma pequena parte da transmissão de este conhecimento, cuja forma real tem como base fundamental os próprios seres humanos vivos e as suas faculdades interiores ativas. Foi precisamente Bahodine de Bokhara (1318-1389) o mestre que desenvolveu as técnicas que constituirão o grande contributo dos Desenhadores. azulejoportuguesA sua concentração no contacto humano, o desenvolvimento de atividades que se integrassem na cultura da comunidade, evitar distintivos exteriores, aceitar o poder político estabelecido sempre que não desse em tirania, converteram aos Desenhadores na escola sapiencial mais poderosa de Ásia Central, estendendo-se por todo o mundo islâmico, especialmente nos povos de vinculação turca. Seguindo o seu estilo deixo aqui, tirado do trabalho de recompilação feita por Idries Shah e Hasan Lufti Shushud, ditos, aforismos e pequenas histórias atribuídas a este grande mestre ou a companheiros dele. Ele é a contraparte sóbria e pouco dada à teorização especulativa que contrasta com outras facetas mais intelectuais de outros ramos da mesma família. Como dizem os sufis: todos são dedos de uma mesma mão. Bahodine e os mestres da sua linhagem são também conhecidos como “Os silenciosos”, pouco dados à argumentação e às filigranas intelectuais, praticam a consciência de ser e são homens ou mulheres de coração contemplativo, de elegância e discrição e sempre consideram aos outros com preeminência sobre eles. Eis aqui alguns fragmentos valiosos para a prática da auto-observação, uma das práticas fundamentais da aprendizagem humana.

“Nunca sigas um impulso para ensinar, sem importar o forte que poda ser. O mandato para ensinar não se sente como um impulso”

“Nunca imites ou sigas a um homem humilde que, ademais, seja mesquinho com as cousas materiais; semelhante homem esta-se a envaidecer das cousas materiais. Se és mesquinho, pratica a generosidade como um corretivo, não como uma virtude”

“Prepara-te para descobrir que todas as crenças que provinham do teu meio ambiente eram secundárias, mesmo que alguma vez tenham sido para ti de grande utilidade. Podem converter-se em inúteis e em verdadeiras armadilhas”

“Prepara-te para descobrir que certas crenças são verdadeiras, mas que o seu significado e interpretação podem variar em concordância com a tua etapa na viagem, fazendo-as parecer contraditórias ao meros observadores externos do Sendeiro”

“Não podes desterrar a dúvida. A dúvida desaparece quando desaparecem a dúvida e a crença tal como te foram ensinadas. Se renuncias a um sendeiro, é porque estavas esperando convicção dele. Buscas convicção, não auto-conhecimento.

“Não estejas pensando se vais por-te nas mãos de um mestre. Sempre estás nas suas mãos. A questão é mais bem se ele pode ajudar-te a que te ajudes a ti mesmo, já que tu tens poucos meios para fazê-lo. Discutir se um confia ou não é sinal de que um não quer confiar de jeito nengum e, portanto, ainda é incapaz disso. Crer que um pode confiar é uma crença falsa. Se te perguntas: “Podo eu confiar?, realmente o que estás é a perguntar-te: Podo desenvolver uma opinião suficientemente forte que me agrade?

“Nunca confundas adestramento com habilidade. Se não podes evitar ser o que a gente chama “bom” ou “sóbrio”, ás como a cana afiada que não pode evitar escrever se a empurram”

E finalmente esta história, conhecida como O disfarce de Bahodine:

Quando estava já a entrar na velhice Bahodine alcançou um alto grau de consideração (cousa que não sempre tinha acontecido). Foi naquela época que começou a oferecer certas audiências públicas onde os seus assistentes e alguns dos seus discípulos podiam observar o que se passava. Isto também formava parte dos ensinamentos. O comportamento exterior de Bahodine costumava ser sóbrio e cortês embora nas situações mais privadas podia ser uma pessoa bem humorada e cercana.

Um dia chegou um rico comerciante que tinha ouvido falar da reputação do sábio. Apresentou-se perante a assembleia, cumprimentou muito educadamente a Bahodine e solicitou ser admitido no ensino como um humilde discípulo. Bahodine pediu-lhe que voltasse ao cabo de seis meses sem mais comentários. O comerciante sentiu-se um pouco desiludido mas, obviamente, não dixo nada.

Durante esses seis meses Bahodine visitou a loja do comerciante fazendo-se passar por Baba Farid, um mercador. Este era um dos disfarces de Bahodine, técnica utilizada desde antigo também por alguns governantes como Harum al Rachid em Bagdá. Em cada visita demorava-se a falar dos mais variados temas. Desde as qualidades dos tapetes até o tempo atmosférico.

Enfim, os seis meses passaram e o comerciante estava de volta na assembleia de Bahodine Naqshband.

– Bem vindo, dixo Bahodine. Quais são os teus sentimentos com respeito a nós depois deste tempo? Continuas firme na tua decisão?

– Ó grande mestre, dixo o comerciante. Estou ansioso e iluminado pola vossa presença. Estes seis meses foram uma tortura mas uma sábia prova de paciência e contenção. Mas agora resplandeço perante a assembleia dos sábios e ver o teu rosto anula todo o passado como se nunca tivesse existido.

– Isso é muito grato ouvi-lo mas necessitava saber que me podes dizer sobre um tal Baba Farid, pois ultimamente tem aparecido por aqui e não tenho um claro conhecimento sobre as suas atividades.

O rosto do comerciante mudou de cor, ficando perplexo.

– Baba Farid? Conhece a esse homem vulgar? Que poderia eu dizer?

Bahodine retirou-se por um momento pedindo que o desculpassem. Apareceu aos dous minutos vestido como Baba Farid

– Eu sou Baba Farid. Durante seis meses recebeste a minha visita duas vezes por semana. Estivemos juntos quarenta e oito vezes e falamos mais nesse tempo do que tenho aqui falado com discípulos que levam dez anos. Não estavas iluminado então pola presença, pola santidade e polas palavras que tanto gostas de admirar em ti mesmo? Não, meu amigo, aqui não valoramos os homens polas suas vestes. Tampouco polas suas grandiosas palavras. Sai de aqui e volta quando o teu silêncio se volte eloquência e as tuas palavras silêncio.

O comerciante saiu entristecido e magoado. Chorou sem parar durante vários dias.

Bahodine falou para a assembleia:

-Alguns dos aqui presentes sentis mágoa por este homem. Esse é um sentimento de auto-importância que deveis superar. Pensais que caiu numa cilada. Não há tal. Ele, de facto, foi muito afortunado e isto será compreendido ao seu devido tempo.

Três anos mais tarde o comerciante foi admitido à presença de Bahodine, chegando a ser um dos grandes sábios da época. Mas o que realmente aprendeu é parte de outra história que não cabe aqui.