Assi(m) morreu ũa língua

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Onde cresce o perigo também surge a salvação

F. Hölderlin

 

dicionario-das-literaturas-portuguesa-galega-brasileiraNinguém pode negar que muitas das críticas realizadas por Fernando Venâncio ao reintegracionismo no seu livro Assim nasceu uma língua são certeiras. Para além de ũa crítica aos posicionamentos teóricos do reintegracionismo, sempre mais discutíveis, o autor revisa com múltiplos exemplos a interposição do espanhol no galego com ortografia portuguesa e o resultado é amargo. Trata-se, na verdade, de ũa defesa do português contra a ingerência do espanhol. É compreensível que um português faga isto. É um dever para um linguista. Mesmo que por vezes pareça duro, os seus argumentos são incontestáveis. Fica claro que a competência linguística dos reintegracionistas da-se em espanhol antes que em galego, ou em português. E o certo é que todos nós sabemos isso. Trata-se de ũa verdade incómoda. Podemos não querer vê-la. Podemos criar ũa caricatura com as suas denúncias ou deturpá-la. Podemos fechar os olhos mas a verdade continuará a existir mesmo que metamos a cabeça num buraco, ao estilo da avestruz. E deveríamos ser sinceros aqui, publicamente, como podemos sê-lo nũa conversa entre amigos. Nós sabemos as razões sociais e políticas de tal situação. Mas tal não muda os factos.

Mas não é um problema só dos reintegracionistas. O problema, reconhece Fernando Venâncio, acontece também em aqueles que utilizam o galego “institucional”. Acontece na imprensa, na televisão, nos uso oral de professores do Ensino Médio e a Universidade, nos políticos, quer dizer, em todos os âmbitos. A interposição do espanhol aqui não parece que resulte tão polémica. É compreensível que, como português, Fernando Venâncio não queira intrometer-se tanto nũa questão “galega” e, ademais, espanhola. Provavelmente aqui se dissimule esta interposição por causa de não interferir com ũa língua consolidada por diferentes estados nacionais. Para o galego autonómico certa tolerância à mistura ou castrapo sempre foi mais conforme à sociedade e não importa muito que até o presidente da Galiza ou, como tem acontecido em épocas não tão afastadas, o presidente da Academia Galega seja um inepto no uso da nossa língua.

Mas Fernando Venâncio leva a Galiza aos primórdios, às origens do português e conta-nos algo que muitos também sabíamos e que, por certo, é a razão mais básica do nosso lusismo ou reintegracionismo: o português é o nome que se dá ao galego, a única língua disponível, a norte e sul do Minho lá polo século XII. Portugal consegue que a língua seja normal a sul do Minho e a Galiza perde essa oportunidade, especialmente a partir dos Reis Católicos. Mas não sem a ajuda de boa parte da nobreza galega. Portanto, deixando questões nominalistas, a pergunta a fazer é: que seria do português atual sem o “galego”? Não seria nada. Se retirarmos o espanhol, o francês, o árabe, ainda fica a língua completa, sem grave prejuízo ou mesmo revitalizada, mas se retirarmos o galego simplesmente a língua desaparece. A questão é simples. Houvo um grupo de gentes que usavam o galego e que criaram o que hoje chamamos Portugal.

Portanto, deixando questões nominalistas, a pergunta a fazer é: que seria do português atual sem o “galego”? Não seria nada. Se retirarmos o espanhol, o francês, o árabe, ainda fica a língua completa, sem grave prejuízo ou mesmo revitalizada, mas se retirarmos o galego simplesmente a língua desaparece. A questão é simples. Houvo um grupo de gentes que usavam o galego e que criaram o que hoje chamamos Portugal.

Depois desenvolveu-se a língua no âmbito cortesã e, segundo Venâncio, a dinastia de Avis tentou afastar-se dos dialetos nortenhos mas sem chegar a completar esta intenção, quer dizer, fracassando. Depois a língua desenvolve-se seguindo as correntes renascentistas e humanistas que significaram ũa volta à cultura greco-latina e a reivindicação de essa continuidade histórica da que falarei um pouco mais adiante. Mas também ũa reintrodução de formas patrimoniais que aconteceu nesse período por causas da consciência educativa do humanismo e a ênfase no uso das “línguas vulgares” . Este é um tema longo e não é ũa questão grata aos diferentes nacionalismos porque significa compreender que existe ũa história europeia que permitia a Galileo Galilei e Tyco Brahe comunicar-se em latim (culto), ou que podamos constatar, para além do léxico, a grande importância dos estudos clássicos em países como Alemanha, o que , por certo, se nota na língua padrão. Esta reivindicação da cultura greco-latina tivo dous momentos importantes (um na Renascença e outro no Iluminismo). É depois do iluminismo que começam a aparecer rótulos como “língua nacional” ou “educação moderna”. Como é bem sabido o galego da Galiza não entrou nessa história que se desenvolveu em espanhol. O galego do norte de Portugal foi influenciado por todas essas correntes que estavam no centro dos problemas de homens como Shakespeare, Camões, Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro ou Cervantes, problemas que iam muito alem de questões meramente linguísticas ou nacionalistas, ainda quando foram usados e violentados com intensidade para tão limitados e circunstanciais fins, especialmente nos séculos XVIII, XIX e XX. Foi Carolina Michaëlis de Vasconcelos quem nos lembrou que as fronteiras linguísticas e políticas não eram tão importantes, quando não francamente minimizadas, pola atitude cosmopolita de muitos humanistas da época. Como não ter em conta um Erasmo de Rotterdam ou um Luis Vives, um Bartolomé de las Casas, um Bernardino de Sahagún ou ao Padre António Vieira?. Como limitar essas amplas questões filosóficas, teológicas e científicas, na alvorada da cultura moderna, a ũa mera questão identitária de “eu mais…tu menos”?. Como esquecer o discurso sobre a Dignidade Humana de Pico de la Mirandolla em que se diz:

“Não te demos, ó Adão, uma morada fixa, nem feições próprias, nem dons particulares, a fim de que seja lá qual for a morada, a feição ou o dom pelos quais vieres a optar, tu, através de teus próprios juízos e decisões, os conquistes e possuas. A natureza dos outros seres, uma vez definida, é constrangida entre os limites prescritos pela nossa lei. Tu porém não és constrangido por nenhum limite, a fim de que através de teu livre arbítrio, nas mãos do qual te pus, tu mesmo o definas. Coloquei-te no centro do mundo, para que possas observar mais facilmente tudo o que existe no universo. Nem celeste nem terreno, nem mortal nem imortal te criamos, a fim de que possas, como um livre e extraordinário escultor de ti mesmo, plasmar a tua própria forma tal como a preferires. Poderás degenerar-te nas formas inferiores, que são animalescas; poderás, segundo a tua decisão, regenerar-te nas formas superiores, que são divinas”.

(Discurso sobre a Dignidade do Homem, texto tirado da rede)

É no interior de estas problemáticas que se inserem muitos dos problemas culturais que vão dando forma a ũa língua. São os problemas que preocupam a ũas minorias qualificadas de pessoas notáveis em diferentes lugares da Europa. É parte de ũa batalha polo esclarecimento, a liberdade intelectual e a abertura espiritual contra a miséria da Inquisição e a limitação do obscurantismo que afligiu a Península Ibérica, expulsando primeiro judeus e árabes, mais tarde mouriscos e continuando ũa “normalização” interna que construiu o nacional-catolicismo espanhol e português, tão vinculado ao papismo e ao império. Trata-se também da maneira em que se subverteu o espírito integrador da Escola de Tradutores de Toledo ou Montpellier definindo cada vez mais os espírito de rapina e cegueira, de desprezo pola sabedoria e a espiritualidade, do fanatismo que caraterizará a Espanha durante tantos séculos. Só lembrar que nos inícios do S.XIX o primeiro ato cultural do Bourbon Fernando VII ao chegar ao poder foi fechar a Escola de Minas de Madrid e abrir a escola taurina. E lembremos que o povo pedia o retorno da Inquisição. Uns anos mais tarde George Borrow dará conta da situação cultural e espiritual de Espanha e Portugal no seu livro The Bible in Spain, traduzida ao espanhol por Manuel Azaña oitenta anos mais tarde. Por momentos parecem as aventuras de Julio Jurenito de Ilya Ehrenburg.

Castelao
Castelao

E sempre foi necessária a cultura clássica, a compreensão de que os problemas humanos da cristandade europeia pertencem a ũa tradição grega, latina, semítica (árabe, judaica, mesopotâmica). Que a língua leva consigo as ressonâncias e as memórias, as transferências, as falas e mitologias. No caso galego também celtas. Que tudo isso é também a língua e entende-se que as vernáculas devem construir-se com respeito a esses modelos não por uma questão só de prestígio social mas porque é a maneira de manter uma conexão com uma memória histórica, uma continuidade da civilização e também a possibilidade de elevar-se a uma polissemia que ressoa com os conteúdos sapienciais da língua. Não são um Lutero ou um Fray Luis de León ou um Padre António Vieira exemplos de inépcia linguística em língua vernácula, bem polo contrário. A sua capacitação clássica forneceu instrumentos mais apurados para o uso do vernáculo, um frescor, uma viveza e ũa espontaneidade reconhecida universalmente.

Ainda lembro a época em que eu estudei o secundário. Lia-se o Conde Lucanor (S. XIV). Vejamos um pequeno fragmento do anteprólogo:

“Pero, desque vieren los libros que él fizo, por las menguas que en ellos fallaren, non pongan la culpa a la su entençión, mas pónganla a la mengua del su entendimiento, porque se atrevió a se entremeter a fablar en tales cosas. Pero Dios sabe que lo fizo por entençión que se aprovechassen de lo que él diría las gentes que non fuessen muy letrados nin muy sabidores. Et por ende, fizo todos los sus libros en romançe, et esto es señal çierto que los fizo para los legos et de non muy grand saber como lo él es. Et de aquí adelante, comiença el prólogo del Libro de los Enxiemplos del Conde Lucanor et de Patronio”

Em castelhano atual a Biblioteca Virtual Cervantes indica o seguinte:

“Cuando las hubieren visto, si encuentran en ellas ciertas faltas o incorrecciones, no las deben achacar a su voluntad sino a su cortedad de entendimiento, porque se atrevió a tratar temas tan importantes y difíciles. Aunque sabe Dios que lo hizo para enseñar a quienes no son sabios ni letrados, por lo cual escribió todos sus libros en castellano, demostrando así que fueron escritos para los más iletrados, para gente de escasa cultura, como lo es él. A partir de ahora comienza el prólogo del Libro de los cuentos del Conde Lucanor y Patronio”

A pesar da grande distância linguística com o espanhol atual era parte do curriculum do ensino. E justo é que se leiam as Novelas exemplares de Cervantes, se o Quixote resultar excessivo. Obviamente há diferenças linguísticas notáveis com respeito ao uso atual mas parece-me adequado que essa formação seja incluída e não por motivos nacionalistas mas porque é um direito e um dever da formação completa das pessoas, que conheçam a história, os problemas, as descobertas e a sabedoria dos que trabalharam duro e honestamente para dignificar a nossa humanidade, e porque é congruente com ũa continuidade da sociedade humana e a própria língua. Porquê, então, foram eliminados nos inícios dos anos oitenta temas referidos à literatura portuguesa que apareciam nos livros de texto do ensino de secundária?. E que a língua de Sá de Miranda derivou tanto do galego que não se reconhece na atualidade como tal? Eis aqui um exemplo do poeta, onde vão marcadas as palavras que já não se usam no português atual. Não marquei “lume” ainda que hoje é pouco utilizada em detrimento de “fogo”

Despois co’a melhor lei, entrou mais lume,
suspirou-se melhor, veo outra gente
de que Petrarca fez tam rico ordume.
Eu digo os Proençais, de que ao presente
inda rimas ouvimos, que entoaram
as musas delicadas altamente.

Ou António Ferreira:

Com mágoa o cuido ah com mágoa o digo
Como um povo em seu bem sempre constante
Veo assi ser da sua língua imigo?

Todos eles quinhentistas, e são citações tiradas ao chou. A questão é: desde a perspetiva linguística são mais “galegos” ou “portugueses”? E indo ao tema: porquê são estudados em Portugal e não na Galiza?. Questão de língua ou questão política? A resposta é óbvia. Se não se ensina a história, a língua, a filosofia, a religião, a política como parte de um contexto imbricado acabamos por permitir que ũa decisão política de um nacionalismo nacional-católico fechado (Santiago y cierra España) defina o que é galego e não é galego, até onde e como poda ser estudado, etc. E, curiosamente, isto é defendido a capa y espada por importantes vultos da cultura galega, nada incompatível com o seu nacionalismo galego, pois os limites linguísticos coincidem milimetrica e pasmosamente com as províncias definidas por Javier de Burgos no S.XIX . E isto ainda é mais doloroso na Universidade (mais bem haveria que chamá-la “particularidade de partículas infinitesimais”) onde o atomismo dos saberes e o positivismo colonial do XIX triunfaram, o que é tristíssimo nas ciências humanas. Para dizê-lo de um jeito singelo: são a cobertura ideológica do neoliberalismo. E não importa o tema que trate, porque não é questão disso. Pode até dedicar-se a produzir estudos críticos sobre o capitalismo neoliberal. O importante é que se trata de um discurso encadeado e retórico sem nengũa força transformadora. Spinoza sabia-o bem: “As Universidades foram criadas mais para submeter o espírito do que para cultivá-lo”.

Citei a Sá de Miranda, Camões, Bernardim Ribeiro, todos eles comprometidos no desenvolvimento de ũa sabedoria e um caminho de retorno ao próprio ser que o mestre de Pico della Mirandolla, Marcilio Ficino, conseguira aglutinar na Florência dos Medicis. Eis Camões:

Que os olhos, e a luz que atei
O fogo que cá sujeita,
Não do sol, nem da candeia,
He sombra daquella ideia,
Qu’em Deos está mais perfeita.
E os que cá me captivárão,
São poderosos affeitos
Qu’os corações tẽe sujeitos;
Sophistas, que m’ensinárão
Maos caminhos por direitos.

Destes o mando tyrano
M’obriga com desatino
A cantar ao som do dano
Cantares d’amor profano,
Por versos d’amor divino.
Mas eu, lustrado co’o santo
Raio, na terra de dor,
De confusões e d’espanto
Como hei de cantar o canto,
Que só se deve ao Senhor?
(Sôbolos rios que vão)

Como se pode ensinar El Conde Lucanor ou El Quijote como parte de ũa mesma continuidade linguística espanhola e negar-lhe ao galego outro tanto?. Suponho que aqui os nacionalismos (galego, português e espanhol) não ajudam muito. Fernando Venâncio dedicou páginas a mostrar a submissão com respeito ao espanhol por parte do português e, mesmo chega a dizer que supera ao próprio galego. Por mais que argumentos eruditos podam dar conta dos empréstimos que o espanhol deixou no português, isto não é algo novo nas línguas: pensemos nos empréstimos do francês no inglês (quase a metade da própria língua) ou no próprio espanhol (começando pola palavra “español”, que é provavelmente provençal ), a questão no galego é o da interposição do castelhano que vai muito além de ũa questão de simples léxico, porque é a interposição de um discurso nacionalizador e identitário que estabelece “o galego como objeto de estudo”, subsumível a ũa presunção de cientificidade que de facto parte de ũa orientação prévia de carácter fundamentalmente político. Pode ser que muitos de boca para fora digam ũa cousa e de boca para dentro não tenham nengum argumento autenticamente linguístico mas propriamente político, mas tentam a construção de um discurso que justifique essa decisão prévia. Mas em que sentido político? Não no sentido de ũa política ao serviço da “sociedade civil”, no sentido de ũa politeía ou cidadania mas ao serviço de ũa visão distorcida polo nacionalismo, ancorado em posicionamentos fortemente emotivos, e onde os “contrários” devem ser purgados ou diretamente eliminados do mapa. Há que pertencer à seita. Falar como um cidadão do mundo, sentindo-se movido polo destino dos que nos rodeiam, dentro de um conjunto de culturas que compõem o tapete humano dos nossos povos, tentando compreender e restaurar as ligações e os mal-entendidos históricos é para mim mais nutritivo e vital que viver desde um localismo que está ao serviço de pequenas capelas complexadas e ressentidas.

Mas há ũa diferença substancial das atitudes individuais, privadas ou pessoais, e aquelas que se incarnam nas instituições. Porque é com dinheiro público que se fomenta ũa cultura subvencionada com verbas substanciais para os que promovem correntes ideológicas, muitas vezes com mentiras e manipulações ou meias verdades. Desde as instituições definem os currículos escolares, organizam os cursos universitários, controlam jornais onde se eliminam debates de público interesse e reproduzem-se os tópicos ũa e outra vez e onde, enfim, se pratica falaciosamente ũa democracia sem democratas. Porque, finalmente, que importa “o galego”, se não compreendemos o lugar das pessoas e a necessidade de um sentido justo e equilibrado para os debates e para que a própria sociedade poda aceder a um conhecimento que lhe é, literalmente, roubado. Memória tão curta que em quarenta anos (desde princípios dos oitenta) conseguiu ũa demolidora “normalização” que obriga a ter que traduzir para “o galego”, segundo palavras de Fernando Venâncio, o seu próprio livro para que os mais jovens podam lê-lo. Este sentido orwelliano da neolíngua foi feito polas instituições, não polos lusistas ou reintegracionistas. O próprio Venâncio dá por bom esse galego como “o galego em si” quando foi realmente construído nos últimos vinte anos do século XX mas perseguindo ao mesmo tempo a todos os reintegracionistas de máximos e de mínimos, muitos deles professores. Não foi um debate honesto e livre. Foi ũa clara “caça de bruxas”. Os argumentos linguísticos que Fernando Venâncio parece ver com simpatia no reintegracionismo mais ponderado foram perseguidos sem misericórdia.

Memória tão curta que em quarenta anos (desde princípios dos oitenta) conseguiu ũa demolidora “normalização” que obriga a ter que traduzir para “o galego”, segundo palavras de Fernando Venâncio, o seu próprio livro para que os mais jovens podam lê-lo. Este sentido orwelliano da neolíngua foi feito polas instituições, não polos lusistas ou reintegracionistas. O próprio Venâncio dá por bom esse galego como “o galego em si” quando foi realmente construído nos últimos vinte anos do século XX mas perseguindo ao mesmo tempo a todos os reintegracionistas de máximos e de mínimos, muitos deles professores. Não foi um debate honesto e livre. Foi ũa clara “caça de bruxas”.

E foi com dinheiro público que se fomentou ũa cultura subvencionada, submissa e medíocre ao serviço de ũa norma, independentemente do conteúdo ou de outros méritos. Só para promover essa norma(lização). Mais nada, sem outro critério. E também a política de tradução ao galego de obras de língua e literatura portuguesa ou brasileira foi parte de esse projeto, pequeno negócio de alguns. Pode ser referido como um feito social pois responde a ũa necessidade comercial, e a como estão as cousas, mas justamente dá conta do que aqui tento defender num sentido inverso. É demagógico falar da ignorância, da incapacidade e das limitações dos galegos para ler e compreender o português quando foi justamente o que se andou a promover todos estes anos. É ũa profecia autocumprida que atinge não só aos novos mas até aos seus professores, que foram educados para admitir como dogmas de fé os ensinamentos linguísticos produzidos por ũa Universidade feita com o propósito de “cubrir el expediente” “y no dar problemas ni quebraderos de cabeza” como tantas instituições atuais. E ainda assim não é verdade, não resulta difícil ler em português para um rapaz. Ofereçam-lhe o livro. Hoje só se trata de produzir e levar adiante protocolos, nem mais nem menos. A realidade é simplesmente vista como um problema. É isto cordura? É melhor construir ũa à medida e impó-la. Que nome recebe isso? Que os linguistas indaguem que substantivo abstrato ou concreto pode definir esses feitos.

A política de feitos consumados consistirá em mostrar como finalmente o galego não é para nada galego porque, simplesmente, já desapareceu e, obviamente, todos somos competentes em castelhano sem problema algum, independentemente de subtilezas linguísticas de última hora. Quem conhece a dialetologia do castelhano fora de um reduzido grupo de investigadores absolutamente desconhecidos, quem a do português, quem a do inglês e o alemão, quem a do francês: na Galiza poderemos ficar sem língua mas seremos o país com mais estudos dialetológicos produzidos na História Contemporânea. Sempre, claro, em detrimento de algo. Que será esse algo, tão indefinível?

Na Galiza poderemos ficar sem língua mas seremos o país com mais estudos dialetológicos produzidos na História Contemporânea. Sempre, claro, em detrimento de algo. Que será esse algo, tão indefinível?

Sinto que não vou tentar definir o indefinível, pois como bom galego ficarei na escada a subir ou a baixar, depende. Mas quero mostrar a minha gratidão a Fernando Venâncio porque me forçou a escrever, não tanto para responder ao seu livro como linguista pois não o sou, tampouco como ativista da língua ou nacionalista porque tampouco o sou mas por um sentimento de humanidade compartilhada. Primeiro porque sendo português tomou-se o incomodo de pensar intensamente a questão galega (e portuguesa). Porque realiza críticas que compartilho a certo extremismo imitador e formalista e porque põe argumentos que favorecem ũa visão integradora para o galego dentro de um sistema aberto às diferenças. Fernando Venâncio toca ũa fibra sensível em alguns de nós, algo muito mais fundo que um problema académico. Eu tentei mostrar que envolve muitos fios da nossa maneira de estar e ser no mundo. A humanidade atual caminha à beira de um perigo imenso, sem precedentes na história: a possibilidade da autodestruição da própria espécie ou a impossibilidade de realizar plenamente a própria humanidade. E a questão linguística parece um luxo. Trata-se de um fio de um tapete múltiplo, de ũa urdidura que se tece nos destinos da modernidade e o seu final. As velhas ideologia não servem, são eivas e fardos dos que nos temos que desprender o antes possível.

Este ano comecei escrevendo um texto dedicado a Fernando Venâncio e publicado na Revista Palavra Comum, Monólgo, em silêncio, da língua e a fala. Já quase no final do ano, este ano tão estranho, quero lembrá-lo porque diz muito melhor o que, provavelmente, não consegui dizer em todas as páginas anteriores.