A noite de Irene: hibernação e noite

Partilhar

IV

Hibernação

mar de ardora
mar de ardora

Irene estava preparada para passar à fase de hibernação induzida. Era uma fase breve mas perigosa, pois significava adentrar-se na morte por um período curto, apenas uns dias, com o fim de proceder, por um lado, à cópia de toda a memória contida no cérebro e nas diferentes células e, por outro lado, proceder ás modificações génicas necessárias para a nova vida.

Eva acompanhava-a com condescendência e amabilidade e Irene em nenhum momento parecia incomodada pola situação. Obedecia às diferentes instruções, consciente de que o lugar no que se encontrava era permanentemente controlado por sistemas androides e interativos. Mas não parecia causar-lhe apreensão. O edifício semienterrado com cúpulas brancas, revestido de sensores de grafeno era como uma pele sensível desde a que transmitir informação à central, mas não a impressionavam. Respirava com tranquilidade e olhava com fascinação os diversos materiais. Parecia cantarolar uma velha canção ou um poema. Passava a sua mão pelos materiais, alouminhando-os. Eva não reagia a estes estados antigos da velha humanidade. Sabia que tinha que ser respeitosa com essas dimensões do que chamavam “poesia”, um escapismo emocional à falha de compreensão. Era simplesmente uma questão de programação, e devia ser tolerante ao respeito.

Numa certa altura, enquanto caminhava ao lado de Eva, Irene parou-se e convidou-na a sentar-se também. Sentia que podiam ser amigas. Irene não luitava contra o sistema, olhava com uma profunda compaixão tudo o que a rodeava, mesmo não parecia que as cousas inanimadas fossem simples objetos. Havia um extremo cuidado no seu passo, como se todas as cousas merecessem um respeito, uma consideração especial. E dizia-lhe a Eva com suavidade:

– Acorda, minha filha, lembra quem és. Recorda.

Eva estava silenciosa. Tinha sido perfeitamente desenhada para não perturbar-se emocionalmente. A instrução de observar e não atuar precipitadamente estava profundamente arreigada nela.

Irene apanhou a sua mão e agarimou-na com suavidade. Olhou-na diretamente nos seus olhos verdes, fundos. Eva estava como inerte, era capaz de manter a sua compostura com eficiência, mas havia uma frialdade, uma incapacidade de conectar. Mas também não havia sentimentos negativos. Era simplesmente um estado de anestesia emocional.

Irene cantava uma velha canção de berço. Movia ritmicamente o seu velho corpo. Pediu a Eva para que se deixasse pentear o cabelo, que deixasse que as suas mãos acariciassem a sua longa melena negra. Cantarolava enquanto lhe fazia uma tranças.

Lua pendurada dum poço
Princesinha das flores de outono
Dá-me o bico dum moço
Abraça-me no meu abandono.

Mas tinha chegado o momento em que devia preparar-se para a hibernação. Vários androides vieram como assistentes. Irene cantava, ensimesmada, a antiga canção de embalar, como em bisbilhotice. Eva foi-se separando, mas Irene apanhou-lhe as mãos. Com grande ternura fitou-na nos olhos, acariciou o seu rosto por última vez. Louvou as suas formosas tranças. Sorriu amorosamente para ela.

Num instante fugidio Eva hesitou, ficou confusa. Algo pareceu quebrar a sua perfeição. Não sabia como reagir perante esta situação, mas era preciso continuar.

Irene foi conduzida primeiro cara um estado de sedação. Tranquilamente foi fechando os olhos, quase não se mexia. Começou a sentir as pernas frias, depois o ventre e o corpo. Fechou os olhos lentamente. O seu rosto era sereno, sem rugas. Parecia sorrir.

Irene acabava de morrer.

V

Noite

Nos dias seguintes levou-se adiante o processo rápido da hibernação. Era necessário despertá-la num tempo não superior a uma semana, mas isto nunca chegou a acontecer. Contrariamente a muitos outros casos, a reanimação não foi possível.

Eva sofreu uma estranha comoção. O seu projeto tinha fracassado. A sua eficácia aparecia agora como um paradoxo. Não conseguia esquecer as palavras de Irene: não sabes quem és. Recorda. Para que fazes o que fazes?

Eva experimentou por primeira vez a ferida da sua identidade.

Caminhava pela praia sentindo a brisa no seu corpo nu, era uma noite alumiada e cálida, cheia de fosforescências nas águas. A lua e os ouriços tocando o seu pé faziam-na sentir cócegas. E sorria. Respirava e sentia a vida dos elementos: o mar, o sal, o vento sobre o seu corpo, o fogo profundo da lua vermelha. Deitou-se sobre a areia deixando que os ouriços a rodeassem, que a bicassem, mesmo que a agarimassem com as sua puas como se tocassem uma viola. E havia música, não a quietude do violino enquanto a nota dura, mas o ardor do corpo sobre areia viva.

Eva acabava de despertar de uma longa noite. O pequeno ouriço bebia das mãos da rapariga na cabana, sobre um prato, um pedaço de gelo.

Eis o ouriço, a rapariga e o cuidado
o prato, a água, o gelo derretido
um tremor de espinhos neste lado:
o amor que paira e vai despido.

Não há amigo pequeno neste quadro
os espinhos fazem cócegas de outono
o amigo é grande como um velho adro
não cabe aqui no prato, não tem dono.

Ouro de outubro, ouro cobriço: ouriço!
Digo o teu nome de veludo e seda
que grande és, amigo: ao teu serviço!
E a nossa rapariga silenciosa e queda.

E a nossa rapariga queda e silenciosa
pisca um olho e guarda o seu segredo
o gelo, a água, o derreter da rosa
que ganha o amor e vence ao medo!

Algures existe uma praia de ouriços cacho, também conhecida entre os aldeões como a noite de Irene ou a noite da Paz.

Um nome e uma luz antiga para além de todos os segredos.

[Este relato foi publicado originariamente em palavracomum.com]