A continuação do galego medieval é o português atual

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Que é uma língua, um idioma, e que são falas?

As línguas são sistemas de comunicação complexos, interiorizados por grupos humanos. A língua é o instrumento privilegiado de comunicação entre esse grupo.

A língua é possuída pelo grupo e, à vez, pode-se dizer que é a língua a que tem a posse do grupo humano, pois condiciona-o, e determina-o frente aos outros. Ela estabelece o seu particular jeito de se ver como coletividade e de ver o mundo; as línguas, portanto, funcionam como verdadeira alma coletiva dos grupos humanos que as possuem (ou que são possuídos).

A língua é o resultado da criação coletiva do grupo humano ao longo do tempo, do jeito como ele vai designando as cousas, e sobretudo, fala-nos do espaço desse grupo, pois, na medida em que o grupo interage num espaço mais ou menos alargado, determina o alcance espacial da língua, que ao ser língua, supõe rutura com o contínuo linguístico natural das falas; contínuo linguístico que, à vez, vai marcando o afastamento entre as elas.

Quanto mais alargado é o espaço da língua (a área do mercado dessa língua), mais esta nos fala da existência de uma comunidade de utentes que interagem entre si, e mais nos fala da existência de padrões linguísticos que são percebidos pelos falantes como modelos, quer dizer, dignos de imitação, pois eles vão unidos ao sucesso e ao progresso das pessoas.

As línguas são criação coletiva dos grupos de pessoas ao longo do tempo, isto é, do jeito comum como, num determinado espaço, são percebidas as cousas e são coletivamente designadas com estruturas gramaticais em todas interiorizadas [1].

As línguas nascem de falas contínuas no espaço, que geram um padrão de alargada extensão coletiva [2], e na sua gênese -e nas suas palavras e gramática- rastejam-se as pegadas históricas dos seres humanos que antes viveram nesse território e todas as influências que receberam, de que a comunidade de falantes presentes é herdeira.

Língua normal ou normalizada é aquela que num espaço determinado é o instrumento privilegiado ou único de comunicação e de reprodução social.

Idioma é o nome que recebem as línguas quando elas respondem a um espaço organizado e funcionam como a primeira das condições homogeneizadoras desse espaço, sendo uma espécie de alma da coletividade de utentes, pois ela, mais que nenhuma outra cousa, é quem os identifica. Os espaços privilegiados dos idiomas são conhecidos modernamente por estados, entendendo por estados entidades políticas que estabelecem fronteiras [3].

Um estado vem determinado pelas seguintes caraterísticas: Território, população e idioma(s), tudo isso sob uma estrutura organizativa do coletivo, que é a estrutura política da governança ou da gestão coletiva.

Fala é a forma local das línguas, são os idioletos locais que existem em toda a língua. Também são falas os modos locais de grupos, de profissões e as gírias.

As falas podem conviver perfeitamente com uma língua bem padronizada. Aí é quando se produz a diglossia natural de todos os falantes, que usam um registo da língua ou outro dependendo do contexto ou situação.

As línguas, quando não têm o status de idioma, e sobre elas se colocam modelos impostos de idioma, polo estado que abrange e submete o seu território, com modelos que desempenham um papel privilegiado e até exclusivo em muitas das esferas da comunicação, com  modelos que a escola interioriza e naturaliza na população, tendem a tornar-se em falas e a divergir localmente ainda partindo de modelos de língua muito estáveis e extensos espacialmente, pois reduz-se a interação entre os falantes às suas falas locais e ao espaço local (reduz-se a área do seu mercado).

Um apontamento breve sobre a origem da língua portuguesa

A língua portuguesa tem pegadas das falas célticas, que eram as que se falavam em todo o território ibérico da língua há mais de dous mil anos. Sobre elas, uma estrutura de poder e dominação, o império romano, colocou uma língua muito achegada na sua estrutura e vocabulário às falas célticas, que era o latim. Este Latim “unificado” foi a koiné comunicativa na diversidade de falas existentes previamente, e a proximidade do latim e as línguas célticas é tão grande que há autores que colocam, nas famílias linguísticas do indo-europeu, o latim entre as línguas célticas. Se o latim for considerado uma família indo-europeia diferente, ele é com muita diferença, a mais próxima das línguas célticas.

De facto, a naturalização do latim no espaço de governação romano foi muito fluente no espaço das línguas célticas, e muito mais fraca fora desse espaço [4].

Sobre o espaço originário da nossa língua vieram logo influências germânicas e árabes que deixaram as suas pegadas no vocabulário. Há mais influências, mas estas são as mais visíveis.

O desenvolvimento cultural, científico e técnico e as explorações de novas terras e mundo levaram à criação de muita terminologia.

Hoje a nossa língua, sendo a mesma de há oitocentos anos, pois sem muitas dificuldades textos primigénios da língua escritos entre os séculos 12 e 15 são facilmente compreensíveis por leitores cultos modernos, é diferente da que havia naquela altura, pois Camões teria muita dificuldade para entender artigos da imprensa atual, cheios de palavras que correspondem a realidades de todo o tipo inexistentes na sua altura.

A língua portuguesa nasceu na Galaeccia, na faixa ocidental que vai desde o Rio Eume a Aveiro, com os centros difusores e criadores dum modelo no espaço entre Compostela e Porto.

Quando esta começou a ser escrita substituindo o latim, incluso nos textos académicos e palatinos, encontramos uma língua admiravelmente bem estruturada, muito unificada, ainda existindo um certo caos ortográfico; e além disso, uma língua que ganhara espaços que se alargavam muito além da pequena faixa que fora a sua forja originária.

O espaço originário da língua, o da Galiza, era, em termos europeus daquela altura, um espaço que não podia ser definido como pequeno.

A fratura do espaço territorial originário da língua deu lugar ao nascimento dum estado que adota o nome de Portugal [5], pois a parte mais pequena da Galiza, a situada ao norte, vai continuar usufruindo o nome. Isso também podia ter sucedido a contrário, isto é, que fosse o sul  que usufruísse o nome [6].

O norte acabou perdendo a sua personalidade política independente, ao ser submetido por Castela.

A continuação do galego medieval é o português atual, e é-o, em muito mais grande medida, que a que se dá entre ele e as falas chamadas galegas que permaneceram nesse território do norte. Há muita menor continuação entre o galego ao norte e o galego medieval, que entre o galego medieval e o português atual, a que o facto de ter perdido alguns rasgos regionais minhotos e beirões não apaga nada essa continuidade.

As palavras têm um grande poder taumatúrgico e fazem magia, e o facto de ter havido uma descontinuação no nome, oculta esta realidade a muitos pouco apercebidos,  que não reparam, ainda que uma linguista como Carolina de Michaëlis, criando o termo de galaico-português, viesse deixar clara a continuidade, pois quando Portugal-reino nasceu, o português já existia, visto o nome não indicar nenhuma variação de língua.

A fraturação do espaço, ou como português ao norte passa de língua a falas

Não vou comentar aqui o que já foi desenvolvido noutras comunicações minhas, simplesmente quero lembrar que a Galiza foi submetida a sangue e fogo: as suas elites dominantes substituídas por elites estrangeiras castelhanas,  e retirada a validade a qualquer documento que não estivesse escrito em língua castelhana, língua que passou a ser a da cultura e a do progresso social, e a das elites urbanas.

A Galiza tradicional e as suas gentes viveram de costas a isso na medida em que estavam de costas aos que  as exploravam, e mantiveram a sua língua bem viva, mas a cada passo que se ia andando ficava um pouco erodida. No século XVIII escrevia Sarmientoum falante galego resulta indistinguível de um falante português para os castelhanos. O outro vulto galego do século XVIII, Feijoó, afirmava a identidade linguística das falas galegas com o português.

Não vai ser até as invasões napoleónicas que vão aparecer panfletos em que se tenta representar as falas galegas segundo o modelo castelhano, –o único que se conhecia, o único que se podia conhecer-.

A escola nacional castelhano/espanhola fez muito para naturalizar a sua língua na Galiza, garantindo de forma crescente, à medida que o tempo passa, o perfeito domínio pelos galegos de um castelhano simples.

A língua do século XIX está muito marcada localmente, cada texto é da sua zona. A velha língua portuguesa na Galiza deixara de ser língua para passar a ser falas, onde os seus utentes marcam a sua cor local.  Foi a emigração maciça de galegos do norte do Minho para o reino de Portugal que ajudou a manter a fluência comunicativa com esse reino, e não só isso, senão que, como ressaltei na minha comunicação de Bragança (acho que 2005) , integrou nas falas a norte do Minho vocabulário criado pelo génio da língua portuguesa na sua expansão polo mundo, mas que era desconhecido a norte do Minho, onde o processo de aculturação castelhana impediu a atualização e o crescimento normais nas línguas em todo o lugar, pois todo o que chegava de novo, chegava na única denominação que era possível na Galiza: em castelhano.

Em meados do século XIX começa um movimento que, como o professor Fernando Corredoira no seu prefácio a versão do padronizada do Sempre em Galiza explica:

“Em meados do século XIX renasce para a literatura uma língua socialmente estigmatizada, funcionalmente minorizada, banida das instituições oficiais e hostilizada pelo Estado. Popular e realmente falada, a língua galega começará a ser posta ao serviço dum movimento cultural e político que irá perfilando uma vocação que (com cautela, porém) poderíamos chamar nacional. Desde inícios do século XX, contra tudo e apesar de tudo, sectores da comunidade linguística galega transgredirão normas imemoriais, abrirão brechas em altos muros e sondarão novos caminhos, passando a fazerem servir o galego como instrumento do discurso público e da ação política. Três décadas animosas e febris, férteis, protagonizadas por uma geração, a do nosso Autor, que o levantamento militar de 18 de julho de 1936 e a alongada repressão subsequente deceparam com feroz eficácia.

Como previsível, o recurso ao modelo ortográfico castelhano foi inevitável. O ágrafo galego passou a escrever-se conforme a feição gráfica da língua oficial e única língua verdadeira – tal como ortografada desde finais do século XVIII. Este modelo tinha no mínimo duas vantagens invencíveis: era tecnicamente prestadio e era o único conhecido, o único aliás que podia conhecer-se. De maneira que não havia necessidade de irmos procurar alhures o que já acháramos aqui, nem de se inventar o que já estava inventado. Acresça-se, em ordem a perceber as intenções do programa linguístico dos primeiros promotores da língua regional, que, entre estas, de nenhum modo se encontrava a de concorrer com a língua nacional, cuja hegemonia estava fora de causa. Correlato visual da minorização linguística, a ortografia perfilhada servia ainda para ratificar que as notabilidades escreventes do galego eram e queriam ser um subconjunto regional do conjunto espanhol. Houve, sim, e desde cedo, quem propusesse adotar a ortografia portuguesa. A sugestão não prosperou e talvez a frondosa exuberância de letras ociosas que exibia na altura a orthographia lusitana tenha contribuído para tanto. Seja como for, haverá que completar a panorâmica ortográfica, recordando que, em paralelo à medrança da influência social e política do movimento nacional galego, a questão da ortografia tornará a ser objeto de debate nas três primeiras décadas do século passado. Jovens inquietos anunciavam novos rumos, que a desfeita de 36 debelou. ”

Quem começava a usar a língua escrita desconhecia tudo da sua história, desconhecia a documentação medieval, desconhecia Portugal e a sua história, e em nenhum caso queria pôr em questão ou “concorrer” com a língua nacional -a de todas as elites-.

Cada pessoa que escrevia era um defensor da beleza da sua fala, do seu idioleto local, e não sentiam isso como incompatível com um orgulho e patriotismo da sua pertença a Espanha.

A língua na Galiza era uma diversidade de falas muito próximas e intercompreensíveis, mas com muita variação local, dando-se as maiores diferenças naquelas mais afastadas geograficamente, por exemplos as falas eu-naviegas.

A língua como tal, e na definição que eu fazia de língua, deixara de existir. Não só isso, a denominação que era normalmente usada era a do nosso dialeto [7], exprimindo com isso o superior patamar em que se achava o castelhano, que em nenhum caso havia vontade de eliminar, tão só de restaurar a dignidade e o respeito às nossas particularidades tão desprezadas pelos castelhanos.

NOTAS:

  1. Desde a existência das modernas escolas nacionais nos estados, e a sua mídia nacional, são a escola e a mídia o elemento privilegiado de extensão do padrão socialmente aceite da língua.
  2. Esse padrão bem determinado por elites urbanas, e pola corte.
  3. Estão as línguas internacionais que, à vez, são próprias de muitos estados, o que é um fenómeno muito recente, que nada tem que ver com fenómenos como o do latim como língua da ciência, igreja e diplomacia, quando já não era mais falado.
  4. http://www.continuitas.org/texts/alinei_benozzo_alguns-aspectos.pdf / http://www.continuitas.org/texts/morais_genetica.pdf
  5. Que é Portugal o nome da cidade mais galeguíssima da Galiza, Porto, a velha Portuscale romana, e mais tarde Portucale (Portugale), a que foi reduzido o nome para que pudesse usufruir dele o estado inteiro? E quem eram os calecos, a tribo celta achada por Décimo Júnio Bruto, morando ali onde o Douro se mistura com o oceano, (em Cale) “em Portugal”? Esses calecos do Douro deram o nome a todo o noroeste peninsular. Há algo mais português que o ser galego? E galegos por antonomásia só podem ser os habitantes do Porto. Aí estão as raízes. E eles, por serem do Portugale (Porto), são os mais verdadeiros portugueses. http://portugaliza.net/old/numero0/boletim00nova01.htm
  1. De facto por muito tempo os galegos por antonomásia eram as pessoas de Braga e o seu contorno, isto é, o cerne da Galiza, que após a fratura do território ficaram na parte que adota o galeguíssimo nome de Portucale (da cidade de Portu-cale), que significa porto dos galegos.
  2. E afirmando sempre os falantes, o de ser o seu dialeto, de muito má qualidade