Texto lido a 26 de Outubro de 2019, no Fórum Municipal Romeu Correia, em Almada,
na cerimónia de entrega do Prémio Literário Cidade de Almada 2019,
atribuído ao livro “Ascensão da Água”.
Uma vez a escritora Alice Walker disse em entrevista que as histórias curam. Não só pela história que é contada, mas pelo acto de contar, por haver alguém que se importa e que quer partilhar uma coisa significativa que venha a transformar-se numa das substâncias da alma de quem a escuta. Certamente, todos aqui carregamos histórias connosco e muitas não foram vividas por nós. Foram-nos contadas por alguém. Mas essas histórias vibram na nossa memória como parte de quem somos. E tantas vezes as partilhamos, na esperança de que também possam ser parte da alma a quem as doamos.
Pode parecer estranho começar a falar de contar histórias a propósito de um livro de poesia, mas a poesia também é narrativa, ela também conta. E ela também cura. A história deste livro começou na nascente de um rio, o Alviela, quando num Dia de São Silvestre escutei pela primeira vez Ascensão da Água e tive a certeza de que o próximo livro que escreveria teria esse título. Para quem não sabe, o Rio Alviela, fruto de um dos maiores reservatórios de água doce da Península Ibérica e um dos afluentes do Tejo mais profanados pela poluição, percorre um longo caminho subterrâneo até vir à superfície, na nascente conhecida por Olhos d’Água, a poucos quilómetros da terra onde nasci. Ali, nos Olhos d’Água, a vida reverbera através de grutas esculpidas por séculos e séculos de água a correr, de musgos, fetos e líquenes, de árvores, flores e animais que fizeram daquela água seiva e sangue. Naquela nascente, completamente enfeitiçado pela força vital do lugar, escutei as primeiras palavras que dão forma a este livro, sussurradas pela Moura Encantada que, como conta o mito, há eras e eras foi ali encerrada por uma bruxa e desde então, chorando o seu amor, tem dado de beber às terras do Ribatejo e de Lisboa. Só mais tarde compreendi como, naquele momento de revelação em que escutei Ascensão da Água, o livro acabara de assumir uma vocação de cura e de magia.
À semelhança do percurso que o Rio Alviela faz para chegar à superfície, também fiz um caminho subterrâneo para convocar as águas deste livro. Um caminho de seca e de sede, de escuridão e medo, de abandono e assombrações. Um caminho em que a poesia foi medicina e invocação, cura e magia enlaçadas de tal forma que se tornaram a mesma coisa. Cada poema deste livro é uma reza, é um feitiço. Ao poeta também cabe o papel de curandeiro, de xamã e de bruxo. «O que é a poesia se não uma magia branca, para fazer recuar as forças tenebrosas que querem destruir a vida?!», disse Natália Correia. Foi a vida que eu quis preservar, mas também a água, pois uma e outra têm uma aliança antiga, geradora do mundo como o conhecemos. E com poesia tracei o meu círculo mágico, para também eu poder viver. E fi-lo através do amor.
Ascensão da Água é uma cartografia de afectos, pois muitos dos poemas são dedicados a pessoas e lugares que eu amo, desde a Beira Alta, a Galiza, a minha vila de Alcanhões e família, poetas. Foi esse amor que me guiou pelos caminhos subterrâneos do mundo, luzes e lumes invocados pela palavra que além de me fazerem ver a verdadeira forma das sombras, me aqueceram num longo Inverno interior e me permitiram convocar águas profundas e levá-las a ascender à transparência das manhãs. E assim extingui a desolação. Esse caminho tornou este livro, antes de qualquer outra coisa, num instrumento de cura para mim. Espero que o seja também para o mundo, para quem o ler, pois a poesia tem tanto poder que é capaz de incendiar a mais densa escuridão, como há dias escrevi neste poema:
quando só houver frio e trevas
e da luz não restar qualquer lembrança
direi a palavra lume
para arder como as estrelas
e acender nos corações humanos
a esperança
Vivemos um tempo em que a água é central no nosso pensamento. Ou deveria sê-lo. As florestas ardem. Os nossos rios estão secos. A Mãe-Terra é ferida diariamente. E apesar das promessas de soluções, falta acção. Mas eu sei que agir de forma a resolver verdadeiramente a questão das florestas e dos rios, e também dos mares e do ar que respiramos, levaria à extinção do sistema económico em que vivemos. E isso eles não querem permitir. Mesmo com as nossas vidas em perigo. Mas não vou falar dos vampiros, como lhes chamou o Zeca. Quero falar, sim, de como a consciência de ser um filho da Terra me fez gerar um livro nas águas uterinas dos antigos mitos da Deusa do nosso território atlântico. Reino de Ophiussa, Jardim das Hespérides, Porto de Cale. Terra da que é Velha, Mulher e Menina. E a Ela eu fiz a promessa de a lembrar. Porque lembrando a Deusa ou, se preferirem, a sacralidade da Vida e do Amor, e vivendo a sua sabedoria, podemos edificar sociedades que em vez de destruir possam criar, que em vez de cultuar a escravidão sejam liberdade e esperança, e que em vez do ódio saibam amar. E assim deixarmos um rasto de vida, de cura e de amor. Pois como diz um dos poemas do livro, O filho da serpente,
Não há trono para herdar
nem cidade.
Apenas os ossos e a árvore
de onde a minha Mãe colheu
as maçãs douradas
para eu morder.
Gostaria de agradecer a atribuição deste Prémio Literário Cidade de Almada. A existência de prémios como este permitem que nós, poetas, possamos vir, de vez em quando, à tona da água para respirar, e assim sentir algum alívio face à maré destrutiva da lógica mercantil, elitista e endogâmica que paira na Literatura em Portugal, em particular em Lisboa, que nos afoga. Enquanto se repete que a poesia não vende e se não vende não tem lugar nas editoras, apropriam-se ao mesmo tempo dessa poesia e dos seus poetas para nos venderem como o grande património nacional. Que fique claro que os poetas não somos produtos do capitalismo nem objectos decorativos da identidade da nação. Somos animal selvagem, bicho e coisa antiga, fogo nascido das estrelas e torrente. Apesar da relevância dos prémios literários, os poetas não podem depender deles para ter voz e lugar no espaço público. Somos herdeiros de uma linhagem ancestral que vai além dos bardos e a nossa nobreza é a Poesia. E não o digo apenas por mim, digo-o por aquelas pessoas que têm vinte, trinta, quarenta anos de carreira, prémios literários ganhos (e mesmo que não tivessem ganhado prémio algum!) e que ainda assim têm dificuldade em publicar um livro novo numa editora. Para não falar das novas vozes… Os poetas merecem melhor e maior cuidado, pois só assim o “País dos Poetas” poderá afirmar-se como tal.
Este prémio tem, ainda, outro significado para mim. Confesso que desde o primeiro momento em que concorri desejei ganhá-lo, pela cidade que lhe dá nome e que me diz tanto. Em Almada tenho pessoas que me são muito queridas e aqui tenho sonhado, pensado e actuado por uma Terra livre, soberana e sagrada. Receber este prémio, hoje, e poder celebrá-lo juntamente com tantos amigos e amigas, só vem reforçar o vínculo que eu já tinha com esta cidade. Muito obrigado por isso!
Para terminar, gostaria de fazer uma dedicatória. Dedico este prémio à Galiza, país onde encontrei um segundo Lar e que me devolveu tanto da raiz da nossa Língua, das nossas tradições, dos nossos mitos. Ascensão da Água dá sinal das marcas profundas que a Galiza inscreveu em mim e este livro não seria o mesmo se eu não me tivesse cruzado com poetas como Iolanda Aldrei, Alexandre Brea Rodriguez, Verónica Martinez Delgado, Concha Rousia e tantas mais. Não só pelo amor e gratidão que tenho à Galiza, mas também por uma questão de justiça, hoje, presto aqui publicamente o meu tributo ao país que tem vindo a ver a sua Língua, o seu povo e a sua ancestralidade profanados pelo Estado Espanhol, que insiste em perseguir e violentar as comunidades que nunca se alinharam com uma Espanha unificada sob o pulso firme de um rei ou de um ditador. Às galegas e aos galegos, às minhas irmãs e irmãos poetas, dedico-vos este prémio, pois de vós recebi a fraternidade dos que ainda se movem pelo sonho, mas também a memória viva dessa Mátria Galaica de que todos os falantes de português são herdeiros. Sei que estamos juntos, mesmo estando deste outro lado da fronteira que inventaram para nos separar. Porque na verdade, a água põe-nos em comum. E como sinal da firmeza desse laço, deixo a minha gratidão, em especial, a uma poeta galega que vive há tantos anos em Portugal, mas que para mim é, acima de tudo, amiga e irmã: Maria Dovigo. Foi ela que me acompanhou no percurso subterrâneo que originou este livro com os seus poderes de fada e sibila, e também foi ela a primeira pessoa a lê-lo. À Maria, dediquei o último poema do livro, Stellaris, que passarei a ler, mas antes tocarei o búzio, colhido pelo poeta marinheiro Xosé Iglesias no Mar da Antónia, diante da Torre de Hércules, na Corunha. Para invocar o Atlântico e o som do vento da esperança.
Stellaris
Sei que a água se move na Terra
sonhando com o regresso à luz dos cometas.
Não há elemento com mais ambição.
As nascentes existem
os rios existem
as marés existem
em nome dessa vontade.