
Nos últimos dias tenho-me ocupado com a leitura de «A Vida Secreta das Árvores», livro escrito por Peter Wohlleben, guarda-florestal alemão com vasta obra publicada sobre silvicultura e ecologia. Não que esteja a ponderar dedicar-me ao estudo das florestas – apesar de reconhecer que poderia ser feliz a fazê-lo –, mas sempre me interessei por árvores. Cresci muito próximo de algumas, em especial das oliveiras e das figueiras, dedicando grande parte do meu tempo livre, em criança, para brincar com elas. Sim, brincar com elas, porque o que acontecia, na verdade, era uma interacção entre dois seres vivos. A criança e a árvore. Eu imaginava-as mágicas e a falar comigo, escalava-as, habitava-as como se fossem castelos, construía cabanas, voava para outros mundos como se fossem naves espaciais. E elas ficavam ali, quietas, disponíveis. Descubro agora que não deveriam gostar muito do humanóide que as importunava com brincadeiras que poderiam pôr em risco a sua vida. Porque, como natureza que são, as árvores sabem quando estão em perigo, e ter um humano a escalá-las deve ser sinal de alerta. Peter Wohlleben explica que as árvores são dotadas de complexos sistemas de defesa contra ataques de predadores, que comunicam com uma linguagem própria através de uma rede subterrânea de fungos, e que até têm memória. Mas o que mais me fascina é a forma organizada como as árvores das florestas se entreajudam, como vivem comunitariamente, cuidando não só dos seus rebentos mais jovens, mas também de outras árvores, seja por estarem velhas, doentes ou terem ficado órfãs.
Creio que, por ter crescido numa vila do Ribatejo, próximo das árvores, das nascentes e ribeiros, de dois rios – o Alviela e o Tejo –, da Lezíria, que se tornava num imenso espelho de líquido fecundo nos Invernos mais chuvosos, nunca me vi separado da natureza. Em vez disso, cedo me tornei consciente de que humanidade e natureza são exactamente a mesma coisa: somos a natureza que se vê ao espelho. Tirando isso, em nada somos diferentes das outras formas de vida: regem-nos os mesmos instintos, as mesmas leis, e todos somos parte de uma grande comunidade de espécies. Para mim sempre foi claro, o que me levou a querer saber mais sobre biologia, ecologia, ambientalismo e sustentabilidade. Isso levou-me a desenvolver um sentido de alerta a uma série de problemas resultantes da relação da humanidade com o mundo.
Não me recordo da primeira vez em que ouvi falar da poluição no rio Alviela – um dos rios da minha região mais afectados pela acção humana –, mas sei que foi o primeiro episódio de ataque à natureza de que tive consciência. Lembro-me, sim, da emoção que senti, que é a mesma que sinto sempre que testemunho algum crime contra a natureza: senti empatia, empatia pela dor da água, como se o rio fosse um prolongamento de mim e o dano que lhe causavam eu o sentisse também. É assim que sinto todos os ataques dos homens à Terra. E dói-me, como me dói!
O último Verão foi particularmente violento: incêndios a consumir extensas áreas de floresta na faixa atlântica da nossa península – monoculturas de eucalipto e pinheiro, na verdade – e a expor a incapacidade, ano após ano, de se promover uma política florestal assente na biodiversidade proporcionada pelas espécies autóctones e no verdadeiro interesse das comunidades locais – e não no interesse do sector da celulose –, que desde a ancestralidade do nosso território mantêm um elo com a Terra, sabendo da importância da harmonia para a manutenção da vida; rios e aquíferos secos a comprometer o abastecimento de água potável às populações e a fragilizar ecossistemas, expondo a inconsciência que ainda existe entre governantes e corporações sobre o lugar vital que a água ocupa no planeta – e sem florestas dificilmente haverá retenção de água; e a poluição, em particular no rio Tejo – com longas reportagens nos meios de comunicação social a expor a insustentabilidade da gestão do rio mais extenso da nossa península, tanto por parte do Estado português como do Estado espanhol –, comprometendo a qualidade da pouca água disponível. O Verão de 2017 serve como amostra de como nós, enquanto sociedade, nos temos servido do planeta de forma abusiva, extinguindo espécies, desertificando a terra, matando os rios. E se à frente deste desfile macabro estão governos e corporações, atrás deles estamos nós, que permitimos que actuem, quando não somos nós próprios a cometer os mesmos crimes. Assim a humanidade se vai auto mutilando, esquecida que está do seu lugar na Terra. Voltarei às árvores, pois aqui temos muito a aprender com elas. Importa-me, agora, dar um exemplo de resistência, pois se o último Verão foi penoso para quem defende os direitos da Terra, também foi crucial para dar visibilidade aos problemas estruturais que existem na salvaguarda da integridade da natureza.
Arlindo Consolado Marques. É este o nome do homem que denuncia, desde 2015 e quase diariamente, a poluição no rio Tejo, entre a zona de Abrantes e Vila Velha de Ródão. São vários os vídeos que tem disponibilizado nas redes sociais, onde são visíveis os efeitos dos efluentes lançados ao rio, com espuma, água escura e, nos casos mais extremos, peixes mortos. Tenho acompanhado as publicações do Arlindo nestes dois últimos anos, juntando-me às vozes que apelam ao fim da poluição no Tejo. Só a partir do último Verão o movimento conseguiu a visibilidade necessária para passar de uma realidade local para um problema do conhecimento de todos. A defesa da água do rio não é da responsabilidade somente das populações ribeirinhas, nas quais me incluo, mas de todas as pessoas. De toda a humanidade, diria eu. Um dos factores que mais deu visibilidade à questão da poluição do Tejo foi o processo que a CELTEJO, da indústria de celulose, em Vila Velha de Ródão, instaurou a Arlindo Consolado Marques, já no Outono do 2017, exigindo-lhe uma indemnização de 250 mil euros e acusando-o de danos atentatórios ao seu bom nome, por este afirmar que aquela empresa está na origem da poluição no Tejo. Podemos não conseguir afirmar com segurança – ainda – quais as diversas origens da poluição no Tejo, mas acções deste tipo, a um cidadão, ambientalista, que dedicou os últimos dois anos à defesa do rio, são uma clara intimidação ao Arlindo e a todos os activistas, pescadores e agricultores que, com ele, têm exigido um Tejo mais limpo. Acções como esta, em que uma corporação entra num confronto directo com um cidadão, numa clara desigualdade de posições, não são novas, e aqui somos chamados a intervir, como sociedade civil, não só para apoiar o cidadão visado, que somos todos nós, mas para dizer às corporações que não podem estar no mundo com a postura autoritária que adoptam frequentemente, gozando da protecção de entidades governamentais e abusando dos direitos humanos e da Terra. Neste caso, o processo visa o Arlindo, mas visa atingir-nos a todos. Por essa razão, «Somos Todos Arlindo Marques», nome adoptado para a campanha de recolha de fundos de apoio às custas do processo judicial que foi instaurado a Arlindo Consolado Marques (mais informação aqui ). Além da campanha, a decorrer até ao fim de Fevereiro, várias assembleias municipais portuguesas, ONGs e alguns deputados também já vieram a público declarar o seu apoio, o que revela a movimentação social gerada pelo caso. E isso só pode ser positivo.
Acredito que o espírito comunitário é um legado da natureza em nós. Apesar de vivermos uma era de crescente individualismo, de convite ao culto do ego, tal é a nossa vontade de ruptura com a natureza que somos, desejo um mundo em que a humanidade possa voltar a viver como as árvores com que iniciei este texto, uma humanidade que permanece de pé, crescendo em direcção ao céu, entrelaçada com o mundo. Uma humanidade que se entreajuda, assente em relações comunitárias que salvaguardam os mais vulneráveis, sejam pessoas, florestas ou rios. É um poder que nos foi dado, esse de cuidar dos outros. Usemos o poder com sabedoria e amor.