Delmar Maia Gonçalves nasceu na cidade de Quelimane, província da Zambézia, em Moçambique, no dia 5 de Julho de 1969. Publicou mais de uma dezena de livros, entre os quais Moçambique Novo o Enigma, Afrozambeziando Ninfas e Deusas, Mestiço de Corpo Inteiro e Entre dois rios com margens. Além disso, coordenou diversas antologias, revistas e outras publicações, como Templo de Palavras, Rio dos Bons Sinais e Zalala. A sua poesia e o seu trabalho em prol da cultura têm vindo a ser reconhecidos, como são exemplo o Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro em Poesia, em 1987; o Galardão de Literatura África Today, em 2006; o Galardão Kanimambo de Literatura da Casa de Moçambique, em 2008; e o Prémio Lusofonia, em 2017.
Actualmente, Delmar Maia Gonçalves é Presidente do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora (CEMD), Coordenador Literário da Editorial Minerva e coordenador editorial e literário da CEMD Edições e da Delmar Edições. Convidámo-lo a responder a nove perguntas.
1 – O mundo de hoje, assoberbado pela tecnologia e pelo ruído, ainda tem lugar para o ritmo da poesia? Porquê?
Sim e sempre sim! Sem poesia não há sonho nem vida! O sonho sempre comandou e comandará a vida. De outra forma o sonho anula-se. Poesia é encantamento, é espanto, é imprevisibilidade, é eterna esperança! Já imaginaste a vida sem esperança? O ritmo da poesia é o ritmo da vida, mas mais completo. Na poesia viver vale mais que a vida e por vezes estamos vivos mas não vivemos.
2 – Quanto ao lugar do poeta no espaço público, como é encarado por ti?
Um poeta que se preze carrega o fardo da solidão do mundo. Vive tudo com uma intensidade única; não há diferença entre o poeta que sonha, que escreve ou fala e o homem que vive. Um poeta deve sempre praticar o seu poema. No poeta, não existe lugar para a incoerência e a hipocrisia. Sempre me considerei um poeta dadaísta que busca despertar no espírito a apreensão imediata e total da vida. Ainda hoje acredito de forma pueril mas amadurecida e pensada que o que parece simples, banal, insípido, insignificante, só o é para quem não sente que nessas insignificâncias quotidianas e regulares é que se forja o que vai muito para além delas. E o poeta é, como sabes, um visionário do porvir, um resistente por natureza, um sonhador esperançado. Mas como dizia a artista plástica Helena Almeida “Pour avancer je tourne sur moi-même”. Estou sempre a retornar a mim seja na poesia ou na prosa, por isso muitos me dizem ser obsessivamente autobiográfico e apaixonadamente em viagem e diaspórico. Nunca fui esteta, mas como Octávio Paz entendo que a escrita automática é um dos meios mais seguros e consistentes para devolver à palavra a sua inocência ou pureza e o seu poder criador original. Por isso para mim importa mais como o poeta assume a sua própria experiência vital do que a obra resultante no processo. Portanto é sempre mais importante o que acontece para se concretizar uma obra do que a própria obra. Sempre!
Para mim importa mais como o poeta assume a sua própria experiência vital do que a obra resultante no processo. Portanto é sempre mais importante o que acontece para se concretizar uma obra do que a própria obra.
3 – Como foi o teu processo de despertar para a criação literária?
O meu despertar para a criação literária nasceu como eu na cidade de Quelimane. Antes de mais nada como leitor assíduo da Biblioteca Municipal de Quelimane, local sagrado de silêncio e diálogo com os livros. Inicialmente apenas fanático da banda desenhada, do livro das Mil e Uma Noites, dos jornais, da revista Tempo e depois a descoberta do Eça de Queirós e depois mais tarde o Cântico dos Cânticos ou Cânticos de Salomão (quarto livro da terceira secção da Bíblia Hebraica), a Bíblia Sagrada, o Alcorão (traduzido) e o Bhagavade-Gita. Depois a descoberta da poesia moçambicana com Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui Nogar e Mutimati Barnabé João. E a seguir o Camilo Pessanha! A descoberta da escrita não se iniciou portanto com a poesia e sim com a prosa. E foi a descoberta do “mestre” Eça de Queirós e da sua requintada prosa que me motivou para a escrita. Descobri na altura alguns textos avulsos do Eça criticando a sociedade portuguesa da sua época e contexto e com a curiosidade natural os seus contos antologiados e mais tarde os seus romances clássicos. Já em Portugal descobri ou aprofundei outros autores que conhecia menos bem como Camões, Camilo Pessanha, Mário Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Bocage, Gil Vicente, Florbela Espanca, Alexandre O`Neill, Teixeira de Pascoaes e Miguel Torga. E isso aproximou-me ainda mais da poesia, com um contributo decisivo, é certo, da professora Gabriela Moreira (de Português, Latim e Francês do ensino secundário), a quem estarei sempre grato.
4 – Fala-nos um pouco das tuas motivações criativas. O que te impele?
Sabes? Quando conheci a saudosa Noémia de Sousa em Lisboa, de quem me tornei amigo, além de um seu profundo e sincero admirador, ficaram a soar-me na mente os seus versos e palavras cheias de honesta fraternidade humana e carregadas de coerência e ética. Não há liberdade de escolha criativa possível quando a opção predominante e generalizada é o ódio, é o sangue, é a morte, é a corrupção, é a mentira, é a dissimulação, é a hipocrisia e a incoerência. Torno-me porta-voz espontâneo dos anseios dos sem voz, dos deserdados, dos excluídos. Daqueles que resistem ao sistema ou recusam a alienação. Portanto as palavras escritas e ditas tornaram-se a minha arma. Procuro ser um guerrilheiro da verdade, talvez longe do meu tempo, longe de tudo e todos, isolado, solitário, talvez incompreendido, talvez maldito. Sempre soube que haveria consequências, mas como diz um velho provérbio africano: “A verdade passa pelo fogo sem se queimar”. Seguirei o meu percurso, a minha missão. Por vezes também me visitam as ninfas, a beleza, o encanto e o espanto da vida e do mundo, uma raridade, confesso. O que me impele e motiva é o sentimento de que posso contribuir, posso ajudar, posso mudar e posso resistir e ser resiliente difundindo o meu pensamento que é afinal o de muitos. Sempre por um mundo melhor. Creio que podemos e devemos contribuir para desordenar qualquer ordem que seja má porque exclui, porque desfavorece uma maioria em favor de uma minoria para finalmente contribuirmos para uma nova ordem inclusiva que congrega todos sem excluir ninguém.
Não há liberdade de escolha criativa possível quando a opção predominante e generalizada é o ódio, é o sangue, é a morte, é a corrupção, é a mentira, é a dissimulação, é a hipocrisia e a incoerência. Torno-me porta-voz espontâneo dos anseios dos sem voz, dos deserdados, dos excluídos.
5 – Com que outros artistas – desde escritores, pintores, músicos, cineastas, etc – procuras dialogar nas tuas obras, quais são as tuas grandes referências?
As minhas grandes referências na literatura serão para sempre Eça de Queirós, Noémia de Sousa, Fernando Pessoa, Balzac, Baudelaire, Hemingway, Gabriel García Márquez, Khalil Gibran e Rabindranath Tagore. Estou sempre em permanente diálogo. Por vezes inconscientemente. Tenho criado ligações que permanecem para além do tempo nas minhas obras e acções também. Autores como Ascêncio de Freitas, Matilde Rosa Araújo, Noémia de Sousa, Fernando Grade, Alexandre Honrado, Alexandre O`Neill, José Craveirinha, Rui Nogar, António Ramos Rosa, Khalil Gibran, Rabindranath Tagore, Jorge Viegas, Vítor Burity da Silva, Juvenal Bucuane (na escrita), Eurico Gonçalves (na pintura e escrita), Lívio de Morais, Roberto Chichorro, David Levy Lima, José Pádua, Luís Soares, Joaquim Canotilho, Lara Guerra, Inácio Matsinhe (na pintura); Satyajit Ray, Akira Kurosawa, Jean Luc-Godard, Júlio Silva, Toshiro Mifune, Amitabh Bachchan, Dharmendra (no cinema); Zeca Afonso, Ary dos Santos e Waldemar Bastos (na música e letra) e Agostinho da Silva, Martin Luther King, Desmond Tutu e Gandhi (no pensamento e filosofias de vida), são aqueles com quem mantenho prolíficos diálogos, muitos deles imaginários, outros reais e de certa forma temos ligações alquímicas e metafísicas. Há uma ética que nos liga.
6 – O teu último livro é Edmar e a montra da loja franca, pela Editorial Novembro. O que gostarias de partilhar sobre ele connosco?
Bem, esse livro tem muitas “estórias”. Enfim. Nunca chegou a concretizar-se o lançamento e apresentação em Lisboa e Oeiras que já estava previsto com a presença da prefaciadora (escritora Manuela Gonzaga) e do Waldemar Bastos (músico angolano). Ambos pessoas que muito estimo e admiro. Depois de dois adiamentos surgiu a pandemia, o primeiro estado de emergência e depois o segundo e as livrarias foram encerradas e quando abriram foi com condicionamentos e constrangimentos vários. Entretanto morreu o músico Waldemar Bastos que até já tinha preparado um número musical especial e nunca se reagendou a apresentação. Sobre este livro infantojuvenil ilustrado, ele retrata a realidade moçambicana no tempo da revolução “socialista”, com Lojas Francas onde se comprava com divisas (dólares,escudos, randes, pesetas) e as lojas do povo onde tudo era racionado. E o sonho de uma criança de comprar um comboio eléctrico e viajar pelo mundo num tempo proibido. Obviamente há um cruzamento de realidade e ficção. Aproveito para vos falar de outro livro “Sempre tive pressa do porvir” Haikais ,da CEMD Edições. Tudo começou no Festival Destrava (Festival de Línguas) na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde estava como poeta convidado com o Casimiro de Brito e com várias/os académicas/os e professoras de diversas nacionalidades (eslovenas, eslovacas, russas, búlgaras, ucranianas, espanholas, cubanos, indianos, portuguesas e portugueses). Além da leitura de poemas em várias línguas, conversamos sobre Haikais e quando a mesa redonda/tertúlia terminou já eu tinha o livro de haikais terminado. O facto de ser um autor dadaísta e zen fez de mim um ladrilhador possuído da poesia e como não poderia deixar de ser o meu tema preferencial foi o meu húmus pátrio.
7 – Como escritor que escreve em português, consideras importante manter o diálogo com autores de outros países e regiões de língua portuguesa? Porquê?
Sem dúvida que esse diálogo é e sempre será prolífico. Podemos crescer na literatura universal e a língua portuguesa ainda não explorou todo o seu potencial. A literatura em língua portuguesa e a nossa diversidade cultural unem-nos e enriquecem-nos. É indiscutível que existem autores de grande qualidade no seio da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Mas continuo a entender que a CPLP ainda está por se concretizar apesar de formalizada. Na literatura e nas nossas culturas diversas, o diálogo e os cruzamentos são mais fáceis. Há maior cumplicidade porque as linguagens se abraçam e convergem apesar das diferenças e nuances. Mas há campos em que isso ainda não é possível, infelizmente. O político é um deles e condiciona tudo. Por essa razão, se no campo cultural nos abraçamos espontaneamente, no campo político mais facilmente nos insultamos e nos afastamos. Não tem havido grande evolução desde 1974 para cá neste campo! Há complexos e rancores por ultrapassar. E acredito que ainda há muito por fazer e se não acontecer essa mudança, receio que esta organização (CPLP) se torne letra morta.
A literatura em língua portuguesa e a nossa diversidade cultural unem-nos e enriquecem-nos. É indiscutível que existem autores de grande qualidade no seio da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).
8 – O que conheces da cultura galega, tens alguma referência que gostasses de destacar?
Da cultura galega e das suas gentes admiro muito a resiliência e resistência para manterem a sua identidade intacta e bem viva. Depois de conhecer em Lisboa em Tertúlias do Círculo de Escritores Moçambicanos da Diáspora (CEMD) e do Movimento Internacional Lusófono (MIL) irmãos e irmãs galegos, pude verificar que temos muito mais em comum do que imaginamos. Daí a minha opção em ter organizado já dois Encontros de Escritores Moçambicanos na Diáspora (EEMD) e dois festivais internacionais de arte e poesia Grito de Mujer no Centro Cultural Galego de Lisboa, um local de referência lusófona sabiamente dirigido. Nesses encontros tenho colaborado desde sempre com a académica e escritora galega Maria Dovigo, uma grande lutadora da causa. Rosalía de Castro, a fundadora da literatura galega, é indubitavelmente uma referência maior da literatura e da voz galegas para o mundo, inspirada na lírica popular e nos cantares galegos. É aquela de que conheço melhor a obra. Para quem quiser conhecer o centro vital da alma galega vale a pena descobrir Rosalía. Mas há certamente outros a descobrir e conhecer melhor, entre outros Emilia Pardo Bazán, Manuel Murguía, Ovidio Murguia Castro, Gustavo Adolfo Bécquer, Eduardo Pondal, Manuel María e os também diaspóricos Manuel Curros Enriquez, Alvaro Cunqueiro e Celso Emilio Ferreiro. Um filão enorme que não termina em fronteiras físicas, pois os galegos vivem em muitos cantos do mundo onde criaram raízes e vivem em diáspora.
Rosalía de Castro, a fundadora da literatura galega, é indubitavelmente uma referência maior da literatura e da voz galegas para o mundo, inspirada na lírica popular e nos cantares galegos. É aquela de que conheço melhor a obra.
9 – Por fim, como encaras a relação entre a Galiza e os países e regiões de língua portuguesa e como pensas que poderia evoluir?
É de importância vital não só o reforço das relações culturais e linguísticas, mas também políticas e económicas entre a Galiza e todos os países e regiões de língua portuguesa. A relação entre a Galiza e as outras regiões e países de língua portuguesa é essencialmente histórica, linguística e cultural. Creio no entanto que estas devem ser potenciadas e exploradas. Há aproximações a nível académico e de intercâmbio cultural, muito pouco, mas apesar de tudo com alguma importância simbólica. Mas não basta; podemos fazer mais. Podemos explorar mais áreas de cooperação, colaboração e intercâmbio. É um imperativo! Quando os países de língua portuguesa entenderem que há ainda uma forte componente política por resolver e ultrapassá-la, como disse anteriormente, e que ainda hoje funciona como obstáculo, tudo mudará. E todos sabemos que ela existe apesar das independências dos cinco países africanos e de Timor-Leste.