Um mais um, não são dous

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Um dos aspectos mais fascinantes do pensamento sistémico é que ele é habitualmente anti-intuitivo. Isto é, quando falamos em sistemas, o caminho mais curto entre dous pontos habitualmente não e uma linha reta, mas caminhos bem mais sinuosos e insuspeitos. Ou, por dizer doutra maneira, normalmente o atalho que pareça inicialmente mais direto e promissório pode converter-se depois numa armadilha que produza efeitos exatamente opostos aos desejados. E isto tem uma importância fulcral, dado que a maior parte das organizações, organismos e entes naturais ou artificiais que conhecemos são sistemas.

De facto, foi apenas a meados do século passado quando, quebrando o paradigma mecanicista e reducionista anterior, se começou a estudar de maneira pormenorizada as propriedades e comportamento dos sistemas de maneira sistemática.

Previamente defendera-se que conhecendo como funcionavam as partes dum conjunto podia ser deduzido como esse tudo iria comportar-se, e que, portanto, o único que fazia falta para resolver o funcionamento de qualquer problema ou sistema complexo era esmiuçá-lo em sub-problemas ou sub-sistemas mais simples, que fossem também mais singelos de abordar, para resolver e induzir a partir daí o funcionamento do todo. Porém, isso acabou demonstrando-se radicalmente falso para aqueles sistemas que não seguem comportamentos lineares. Quer dizer, uma cousa é prever, por exemplo, a queda duma maçã duma macieira em condições habituais e outra bem diferente tentar prever o desenvolvimento de entidades bem mais complexas como uma sociedade ou um ecossistema.

Num sistema linear a abordagem reducionista fornece uma aproximação assaz boa da realidade e, de facto, essa focagem tem fornecido poderosos instrumentos e técnicas que modelaram o mundo tal e como o conhecemos hoje, como também inúmeros problemas atuais que padece.

Por isto, diversos pensadores e estudiosos decataram-se de que essa focagem não era quem de explicar fenómenos que se davam em processos complexos e que precisamente os sistemas deviam ser estudados de forma conjunta [1], porquanto operar em qualquer um dos elementos que os compõem acaba afetando a todo o conjunto.

Portanto, num sistema não chega com conhecer as propriedades de cada uma das partes que o compõem, mas ainda as relações e interações que se produzem entre elas e que dão lugar a propriedades emergentes imprevistas. Como exemplo, uma bicicleta não é um simples guidão, duas rodas e uns pedais amontoados ou arranjados de qualquer maneira, mas a precisa disposição deles duma maneira que permita que alguém possa se deslocar com ela em equilíbrio. Assim, se qualquer um destes elementos não estivesse no lugar indicado, não estaríamos a falar duma bicicleta, mas provavelmente duma escultura ou dum monte de sucata.

Por desgraça para nós, seica o pensamento reducionista vingou e apresenta uma resistência a prova de fogo [‘manque pierda’] na Galiza, não só na linguística, mas também noutros âmbitos. É deste jeito, por exemplo, que, para fazer “produtivas” as zonas rurais da Galiza, se decidiu eucaliptizar o país, sem reparar no tremendo e irreparável prejuízo ambiental que se perpetra dessa maneira.

Já agora a questão é que importância ou relação tem isto com a Língua e, mais especificamente, com a Língua galega. Vamos, portanto, para o que nos ocupa:

O pensamento reducionista aplicado à Língua viria dizer-nos que ela está composta por diferentes subsistemas e elementos que podem ser desmembrados, separados e estudados por partes: por um lado o léxico, por outro a morfologia, a ortografia, a sintaxe, a fonética, etc… . Assim, os linguistas e os especialistas estariam capacitados para estudar essas partes em separado e saber como é que funciona em conjunto. [2]

Pois bem, a ideologia linguística que subjaz sob o galego português ensinado e promovido atualmente na Galiza é em grande parte filha dessa concepção das cousas. Assim, e sem entrarmos a valorizar a inconsciência, ineptidão ou mesmo, vai lá saber, decisão premeditada e voluntária dos pretensos especialistas em língua em que se basearom as autoridades políticas competentes [3], aqueles decidirom que, após a queda do regime franquista na Espanha, a melhor maneira de promover o galego na Galiza era adoptar e promover uma escrita gêmea do espanhol para “no causar excesivas complicaciones a los hablantes y estudiantes del gallego”.

Não demoraremos muito tempo em fazer uma revista deste processo porque aí estão as hemerotecas e os numerosos estudos a relatar e documentá-lo para quem estiver interessado nele. Passaremos igualmente por alto a ideia implícita de que qualquer falante potencial de galego, primigénio ou sobrevindo, é antes ou ao mesmo tempo falante de espanhol.

O certo é que, quando esta concepção das cousas ergueu contestações e réplicas por setores muito mais conscientes da importância duma decisão como essa, a postura ‘oficial’ ficou plasmada em duas frases curmãs, que provavelmente todo galegofalante terá escuitado alguma vez:

1) “A min non me importa moito como se escriba o galego, o que me importa é que se fale”
2) “A min non me importa moito como se escriba o galego, o que me importa é que se escriba”

Porém, talvez seja o momento de analisar o assunto também do ponto de vista do pensamento sistémico para demonstrar a falácia ou a ingénua inconsciência de tais afirmações.

Se, tal como vimos, num sistema – e uma Língua o é [4] – qualquer mudança, alteração ou efeito numa das suas partes acaba afetando o conjunto, como não ia afetar a adopção da ortografia duma língua estrangeira para escrever a própria Língua, ao conjunto dela?[5]

Acho que, passadas já várias décadas deste proceder, nem é preciso insistir muito em que a adopção da ortografia espanhola contribuiu significativamente, e mália toda a parafernália e aparato de organismos e entidades dedicados à sua conservação e expansão, para a descaraterização fonética, léxica, morfológica, sintática, etc… do galego, mesmo entre os falantes presumidamente mais conscientizados e atentos.

A modo de exemplo, diremos que todo o mundo sabe que mesmo que línguas ocidentais como por exemplo o inglês e o português partilhem a quase totalidade das letras dos respectivos alfabetos, essas letras não representam os mesmos fonemas, isto é: não são pronunciadas da mesma maneira.

Pois então, outro tanto acontece entre o galego português e o espanhol. Contudo, terem adoptado quase na íntegra a ortografia espanhola – ainda por cima, língua tecto e modelo linguístico de facto – para escreverem em galego [6] contribuiu com certeza a ultrapassar essa barreira linguística e reforçou a igualação fonética do galego padrão autonómico com a pronuncia padrão espanhola [7], nomeadamente entre a população urbana e os escolarizados trás a instituição do galego como “lengua cooficial” da Comunidade Autónoma Galega.

Pontos de alavancagem
Para continuar com a análise sistémica da dissolução e descaracterização do galego português da Galiza a partir do uso da ortografia do espanhol, é preciso introduzirmos ainda mais um conceito de fulcral importância: os pontos de alavancagem, conhecidos como ‘leverage points’ em inglês [8].

Estes pontos seriam aqueles lugares sistémicos em que, exercendo uma pequena ação ou força, fazem possível mudar o comportamento ou o rumo do sistema no seu conjunto. Por isso, não tenho duvida nenhuma em afirmar que, numa situação de proximidade e familiaridade linguística tão estreita entre o galego-português e o espanhol, a ortografia é um desses pontos de alavancagem que permite mudar o rumo da Língua ora para um sentido, ora para outro. [9]

Doutra maneira, esses pontos de alavancagem viriam a ser o que o linguista norte-americano George Lakoff denomina ações estratégicas [10], que são aquelas em que com um simples movimento conseguem produzir vários efeitos favoráveis para quem as realiza.

Neste caso, os efeitos produzidos sob o argumento da facilidade de aprendizagem por pessoas alfabetizadas previamente em espanhol seriam:

– Desmembrar e isolar o galego português da Galiza a respeito do resto de variedades de galego português do mundo
– Subordinar e satelizar o galego português da Galiza a respeito do espanhol
– Numa situação de bilinguismo apenas teórico, abrir a porta para a infiltração maciça de castelhanismos que descaracterizem a Língua própria e vaiam aproximando-a inexoravelmente da Língua teito real

Assim, a má noticia é que quem não está interessado na manutenção e promoção do galego genuíno da Galiza possui um mecanismo fenomenalmente eficaz para manter a situação atual e que condena irremediavelmente o galego à desaparição ou, quando menos, à descaracterização funcional e à marginação social associada.

A boa é que os pontos de alavancagem podem ser usados num sentido ou no outro, de maneira que um uso maciço ou suficientemente estendido da ortografia própria do galego faria mudar com certeza a situação e as perspectivas da Língua.

É pasmoso comprovar no entanto como alargados setores da sociedade preocupados, no mínimo na teoria, com o evidente devalo quantitativo e qualitativo do galego não tenham sido quem de se decatar ainda disto e, ante o declínio brutal do galego, teimem contumazmente em tomar o atalho errado que os/nos leva para o abismo.

Notas:
[1] Entre outros: von Bertalanffy, Prigogine, Maturana, Howard e Eugene Odum, etc.

[2] Compare-se esta abordagem com a afirmação do lingüista francês Antoine Melliet: “[C]haque langue forme un systéme ou tout se tient” – Antoine Meillet, Introduction à l’étude comparative des langues indo-européennes (1903). Paris: Hachette, p. 407.

[3] “competentes” no sentido de ter competência, não no de ser aptas.

[4] “La langue est un systéme dont toutes les parties peuvent et doivent être considérés dans leur solidarité synchronique” – Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale (1916), Part 1, Ch. 3, sec. 3. Paris: Éditions Payot, 1995, p. 124.

[5] Eugenio Coșeriu, Teoría del lenguaje y lingüística general (1973). Madrid: Gredos.

[6] A adaptação do n(h) para representar o ene velar e mais o ubíquo uso do xis para ‘g’, ‘j’ e ‘x’, como no completamente satelizado astur-leonês, não altera fundamentalmente isto. Ainda, sei que a adopção da ortografia espanhola para escrever em galego não apareceu ex novo com a instituição da Autonomia galega, mas sim que foi o momento em que tal ortografia foi – ilegalmente! – “oficializada”, quando havia outras possibilidades muito mais fieis com o passado e acaídas para o futuro da Língua.

[7] Só é preciso assistir uns minutos à emissão dos meios de comunicação autonómicos dedicados pretensamente à difusão do galego – onde essa igualação também opera -, para comprovar qual é o modelo ortofónico adoptado e transmitido.

[8] http://thwink.org/sustain/glossary/LeveragePoint.htm

[9] http://farm3.static.flickr.com/2088/2264700353_f56e6db3f8.jpg

[10] George Lakoff, Don’t Think of an Elefant (2004) Berkeley: Chelsea Green. Resumo em espanhol disponível aquí: https://resumante.wordpress.com/2007/11/04/no-pienses-en-un-elefante-lenguaje-y-debate-politico-de-george-lakoff/

Máis de Heitor Rodal