Hierarquia, mercado, valores

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Explica o economista David Anisi [1] no seu livro “Creadores de escasez: del bienestar al miedo” [2], entre outras muitas cousas, que no seio das sociedades há três sistemas principais que as conformam e regem, que são a hierarquia, o mercado e os valores.

Como breve apontamento, podemos dizer que a hierarquia viria a ser o poder politico, o mercado a economia e os valores o conjunto de valores e percepções socialmente aceites. Cada um destes sistemas que dão forma e organizam o funcionamento das sociedades possuem, alias, uns âmbitos de atuação e uma linguagem própria que se exprime formalmente em ordens, preços e persuassões.

Desta maneira, o nosso papel, tempo e atividade individuais, como membros duma sociedade, ficam reguladas por uma determinada combinação do sistema politico, económico e valorativo ou, numa tradução mais prática, polo sistema de preços, ordens e persuassões da sociedade em que vivemos. Ainda, é a harmoniosa e correta combinação desses três sistemas a que consegue, em palavras de Anisi, articular de forma estável as sociedades humanas:

“Y es precisamente esa combinación de sistemas la que logra articular de una forma estable a las sociedades. Nada bueno puede esperarse de una sociedad que regule jerárquicamente los adornos que deben lucir las muchachas en primavera, que confíe al mercado el cuidado de los más débiles y que aplique la ética a la determinación óptima del tamaño de los pepinos.”

Porém, esses três sistemas estão sempre em permanente conflito pola supremacia na direção do corpo social, procurando cada um deles subjugar os outros dous, e, tal como relata David Anisi na obra, trás períodos passados em que o sistema hierárquico e o valorativo tentaram se impor sobre os outros dous, foi finalmente o mercado quem nas últimas décadas foi capaz de ir arrebatando espaços de poder à hierarquia e aos valores:

“El mercado como organización de poder se gesta a costa del poder que logra arrebatar a las organizaciones jerárquicas y valorativas que compiten contra él. En su extensión tratará de acabar con las organizaciones rivales combatiendo cualquier tipo de organización jerárquica o valorativa rival, tratando de que “todo sea mercado”. Y en su consolidación, y dado que un sistema sólo es estable cuando se da una mezcla armoniosa, fomentará organizaciones jerárquicas que le complementen y sistemas de valores que le apoyen.”

É nesta linha é que podemos inserir e interpretar a crescente mercantilização de cada vez mais âmbitos da vida quotidiana, dos serviços sociais até o espaço publico.

Podemos dizer também que é este brevíssimo resumo da obra o que precisamos para tratar o tema principal deste artigo, que é como este três sistemas têm operado e operam na Galiza, sobre tudo a partir duma óptica reintegracionista ou regeneracionista.

Neste sentido, é bastante evidente para qualquer observador que na Galiza há um sistema hierárquico, de mercado e de valores bem estabelecido, que podemos resumir em três aspetos:

1) uma democracia representativa formal,

2) um mercado capitalista de caráter extrativo e com atores consolidados em que a Galiza desempenha basicamente o papel de produtora de matérias primeiras e fornecedora de mão de obra barata,

e, por ultimo,

3) a inserção da Galiza (sob o carimbo de “Galicia”) no conjunto espanhol.

Assim, qualquer elemento que possa pôr em causa esta estrutura é duramente combatido e censurado.

Conforme com esta situação, a estratégia política do assim denominado nacionalismo galego das últimas décadas foi tentar dominar o sistema hierárquico local – quer dizer, o poder politico nas municipalidades e/ou no governo autonómico – para, a partir dele, dominar e mudar os outros dous, isto é: os valores e o mercado, sem pôr em causa de início os valores e o mercado no processo de conquista do poder politico, na esperança de que tal estratégia seria quem de esquivar as resistências e oposição que isto suscitaria.

Contudo, e trás várias décadas a transitar por esse caminho, a estratégia demonstrou-se errada: parece ser que os ideólogos e estrategas desta via negligenciarom o facto de que num sistema de democracia representativa formal é preciso ter certa influência e poder incidir nos outros dous âmbitos – quer no mercado, quer nos valores – para poder aceder ao poder hierárquico.

Por isso, tendo apostado tudo a uma única carta , não só não se atingiu o poder politico de maneira estável, senão que se abandonou o trabalho e as propostas realmente alternativas e libertadoras nos outros dous campos, ora para conseguir uma hegemonia social favorável em termos gramscianos, ora para não ficar sumidos numa hegemonia social contrária, o que teve um fiel reflexo tanto na desfeita cultural e linguística operada na Galiza, quanto na maior e crescente subsidiariedade da economia galega a respeito da espanhola.

Todavia, e dado que este é um portal sobre a Língua e não o lugar para discutir sobre quais deviam ter sido os caminhos e estratégias tomadas no âmbito económico, centrar-me-ei logo no que diz respeito ao sistema de valores e a como é que se pode incidir nele da própria Língua e da linguagem.

Tal como já apontara num artigo anterior [3] o primeiro passo que é preciso dar neste campo é ser ciente e não aceitar o enquadramento concetual que se quer modificar ou combater e, posteriormente, para mudar esse enquadramento implícito, o uso da linguagem é fundamental.

De nada serve fazer manifestos, apresentar planos ou organizar manifestações se depois não há uma prática linguística coerente, constante e sistemática a acompanhar e reforçar esse discurso. E é aí onde a prática e as escolhas linguísticas e comunicativas do chamado nacionalismo galego das últimas décadas se demonstrarom particularmente desastrosas.

Por uma parte, no que diz respeito à Língua, acabou-se assumindo acriticamente a configuração formal da Língua, materializada numa normativa ILG-RAG que supedita o galego português da Galiza ao espanhol.

Pola outra, adoptou-se a terminologia do adversário ideológico que se pretendia combater. Passado um tempo essa terminologia foi mesmo interiorizada, não sendo estranho vermos expresses como “Policia Nacional”, “Audiencia Nacional”, etc… sem nenhum adjetivo a explicitar de que nação é que se está a falar, numa assunção implícita do enquadramento ideológico e conceitual aos que estes termos referem, nomeadamente à Espanha e à língua espanhola por excelência, o espanhol.

Parece portanto que, se há ainda qualquer vontade de reverter o processo e para além do que se deveria fazer igualmente no âmbito politico e no de mercado, temos aqui um extenso e alargado campo onde operar.

Notas:

 

 

Máis de Heitor Rodal