Talvez polo passo do tempo, talvez porque nesta andaina que vamos fazendo todos cada vez sou mais consciente de que as identidades de cada quem vão formando-se por adição e resta de elementos trazidos daquí e dacolá, que depois se vão cristalizando em diferentes escalas. Alguns deles são partilhados com alargadas comunidades, outros são apenas partilhados com as pessoas mais próximas. É assim que, por vezes, vão aparecendo pequenas tradições, frases feitas e costumes íntimos, familiares.
Para lhes relatar uma destas pequenas tradições familiares, tenho de fazer primeiro uma breve introdução à história familiar. Os meus quatro avôs, paternos e maternos, eram galegos. Bom, por melhor dizer, os meus cinco avôs, pois eu não tivem quatro, mas cinco avôs.
O avô e mais a avó paternos eram de Cangas do Morraço e alí viviram até que ao meu avô Ángel “o emigraram” para o País Basco, para o porto de Pasajes, alá pola década de 50 do século passado. Uns armadores bascos compraram o barco onde trabalhava e quem quisesse continuar a trabalhar, devia emigrar com o barco. Foi assim que anos mais tarde o meu pai, com 11 anos, chegou a Pasajes com os seus avôs, os derradeiros que ficaram na casinha de Longã em Cangas, enquanto o meu avô Ángel ia ganhando e poupando cartos para ir levando a familia toda para lá.
Da parte da minha nai, a família já emigrara anos antes, comestos pola fame depois de que um submarino alemão afundisse o barco pesqueiro em que faenava o meu bisavô em alta-mar, sem que se pudesse salvar ninguém, e deixando à minha bisavó Avelina, viúva e sozinha com seis filhos pequenos que alimentar. Foi por isso que resolveu marchar igualmente para Pasajes, a trabalhar no mercado de peixe e foi assim que a minha nai já nasceu no bairro de Trintxerpe da vilinha basca.
Mas, como em casa humilde as desgraças não chegam sós, também o meu primeiro avô materno, o avô Serafim, morreu afogado igualmente em alta-mar, deixando a minha avó Carmen viúva. A minha avó Carmen -maravilhosa mulher de quem guardo extraordinária lembrança-, casou depois por segunda vez com o meu avô Juan, do Porto Doçom, o meu quinto avô e quem me ensinou a caminhar. Tenho que dizer que ele também afogou no mar aos poucos disso, não em alta-mar, mas na entrada do Porto, em ‘Puntas’, numa manhã traidora e nevoenta.
A questão é que, idas e voltas da vida e muito antes disso suceder, o tempo e a vida fizerom com que o meu pai e a minha nai se conhecessem, casassem e formassem família. Em verdade, uma família galega das Rias Baixas -uns da Ria de Vigo, outros da Ria de Arousa e ainda outros da Ria de Muros e Noia-, transplantada como uma muda para a ria de Pasajes.
Já de casados, os meus país íam de tanto em tanto visitar a família, os primos e curmãos que ficaram em Cangas, na Póvoa do Caraminhal e no Porto Doçom, onde a minha nai tinha curmãos e tias, irmãs e sobrinhas do meu avô Juan. Polos vistos acontecia amiúde que, na imediatez das visitas os meus país eran convidados a ficar na casa e precisando lojas onde comprar alguma cousa que lhes faltava, os familiares da minha nai lhes indicavam que no Porto Doçom, daquela só podiam ir comprar “a cas Ferrim ou a cas Carou”, seica os únicos armazéns que devia haver na altura na vila.
A questão é que os meus pais acharom muito engraçada a frase e ficou esta congelada como chavão cada vez que havia que escolher entre dous sitios aos que havia que ir e tem sido assim que a tenho escuitado eu infinitas vezes durante toda a minha vida, até ao passado setembro.
Pois é, meu pai: imos a cas Ferrim ou a cas Carou?
Em memória do meu pai, bom entre os bons.