Conta o escritor Francisco Ayala no seu livro «Recuerdos y olvidos» que o Prémio Nobel Juan Ramón Jiménez, na altura do seu exílio, foi convidado a proferir uma série de conferências nos Estados Unidos e, se não me engano, no Brasil também. Depois de percorrer o continente, voltou à Argentina, onde vivia, e quando desceu do barco e ouviu todas as pessoas a falarem de novo em espanhol, disse: «Por fin en casa».
Ayala faz uma reflexão muito interessante sobre a língua, concordando com Juan Ramón em que a nossa língua é, na realidade, o nosso lar.
É o lar, para o bem e para o mal, mesmo quando queremos fugir dele. A filósofa alemã Hannah Arendt dizia que a língua alemã era, para ela, a ligação à grande herança cultural alemã, na qual podia pensar e criar novos conceitos, e que se recusava a rejeitá-la, ainda que o seu exílio tivesse sido provocado pelo regime nazi. Mas outros judeus, também exilados, reagiram rejeitando totalmente a língua, precisamente pela mesma razão: por não quererem falar a língua que até então fora o lar de onde foram expulsos.
Há poucos dias, na minha universidade (em Madrid), uma aluna galega enviou-me uma mensagem a perguntar uma questão. A mensagem estava escrita em galego RAG, e, antes da pergunta, a aluna pediu desculpa por ter usado galego, apesar de eu ter dito nas aulas que falava a língua.
A minha primeira reação foi dizer-lhe que não precisava de pedir desculpa por usar a sua língua. Comigo, poderia usá-la sempre que quisesse. A minha segunda reação foi a mesma que sinto quando regresso à Galiza e ouço a língua: já estou em casa, ainda que viva em Madrid.
A ideia de que o «espírito do povo» (o «Volkgeist» dos filósofos alemães do movimento romântico) se manifesta através da língua é muito discutível, porque primeiro teríamos de reconhecer a existência de um espírito ideal, e isso é ainda mais questionável. Os românticos exageraram um pouco e deixaram-se levar por um idealismo que contagiou os primeiros nacionalistas do século XIX. Mas essa ideia levou-os a um beco sem saída no labirinto do idealismo. Não há dúvida de que todos sentimos algo de especial pela nossa língua. É uma emoção, um sentimento, sim; mas é também um elemento constituinte do nosso «eu», individual e coletivo.
As identidades individuais são constituídas não só pelas coisas que eu próprio digo que me definem, mas também pelo que os outros — estrangeiros e compatriotas — veem em mim e reconhecem como atributos da minha comunidade. Porque a identidade é sempre uma questão de dois: o que eu digo que sou e o que os outros veem em mim. O facto de eu falar galego (ou outra língua) não faz de mim galego (ou outra nacionalidade). Só o facto de os outros galegos me reconhecerem como um dos seus é que faz de mim um galego. No meu caso, eu também falo inglês e francês, mas nem os ingleses nem os franceses me reconhecem como um dos seus.
Se há coisa que aprendemos com os estudos do imperialismo linguístico e do passado colonial do Ocidente, é precisamente esta: o facto de falar uma língua não faz de ninguém um membro da metrópole. A língua marca a identidade, mas não a define.
Neste momento, a língua galega é um elemento constituinte da identidade galega, e os galegos reconhecemo-nos entre nós, entre outras coisas, pelo uso da língua — o mesmo que os forasteiros. Embora tenhamos de reconhecer que as identidades dos povos não estão ligadas apenas às línguas, e a história está cheia de exemplos. Se perdêssemos a língua, isso não seria o fator determinante e único para perder a nossa identidade, mas seria, sim, uma perda irreparável para a ligação com a nossa herança cultural, e perderíamos esse intangível que nos permite cantar em coro o nosso hino nacional. O que aconteceria é que a nossa identidade seria mais frágil, porque a ligação diacrónica com todos os galegos do passado tornar-se-ia alheia para nós.
É preciso que a defesa do galego também seja feita em termos de utilidade e de «mercado das línguas». Não vou negá-lo. Mas o caráter simbólico da língua como marcador de identidade advém da nossa vontade, não é um facto objetivo como o número de falantes do galego internacional. Porque os símbolos não dependem da sua forma para ter um significado, mas dependem única e exclusivamente da vontade dos falantes. E para nós, a língua é um símbolo nacional.
Por isso, talvez a perda de falantes de galego não tenha tanto que ver com as redes sociais e os gostos da gente jovem, o ensino e a televisão, mas com a nossa identidade como galegos e a nossa relação com os símbolos que ajudam a defini-la.
Será normal que alguém, como a minha aluna, peça desculpa por falar a sua língua? Eu fiquei a pensar longamente nisso. Seria normal que alguém pedisse desculpa por ser galego? Lamentavelmente, isso já aconteceu na nossa história.
Falar galego não marca a identidade como nacionalista, de esquerda ou de direita, soberanista, progressista ou tradicionalista, lusista, ou sei lá que mais. Falar galego simplesmente faz de si galego. Nada mais. E é a gestão dessa realidade simbólica que estamos a abandonar, perante os que pensam que ser galego é apenas uma marca de origem territorial.
Dizia Thomas Mann, quando partiu para o seu exílio, fugindo dos nazis, que com ele viajava toda a cultura alemã. Quem dera que qualquer de nós pudesse dizer o mesmo.