Há uma filosofia galego-portuguesa?

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A Crónica viva do pensamento galego do Marcelino Agís e Itinerários do pensamento filosófico português da Maria Celeste Natário têm algo em comum: uma reflexão inicial sobre si há ou não uma realidade que poda ser chamada, no primeiro caso, filosofia galega, e, no segundo, filosofia portuguesa. Não é surpreendente que em ambos livros a resposta seja muito semelhante: há, mas sob a forma de uma interrogação constante à cultura do país de várias frentes. Mas, por que este matiz?

No Ocidente, a filosofia académica gira em torno de dois polos: o continental e o inglês. Por uma banda, temos a filosofia pensada na França, na Alemanha, e as suas zonas de influência, com o racionalismo, o idealismo, o existencialismo, e as suas variantes contemporáneas; e por outra banda, temos a filosofia analítica e o pragmatismo, desenvolvidas na Inglaterra e que som comuns ao mundo anglo-saxão. Mas estas som classificações académicas, o que as pessoas entendem normalmente por filosofia, com uma lista de autores e doctrinas ligadas à metafísica, à estética, à ética e à lógica. Não obstante, há outra maneira de a entender.

De facto, a filosofia nasce no cerne de uma cultura e é consequência do questionamento que as pessoas fazem sobre ela, a fim de a compreenderem e de compreenderem a si próprio, como sociedade que vive junta e como indivíduos que têm uma relação com todos os demais. O trabalho da filosofia é dar-lhe nome às cousas que passam, e conceptualizar a realidade para poder a compreender e, assim, poder viver melhor. Essa tarefa não é exclusiva dos filósofos profissionais senão de todos os criadores de cultura.

O trabalho da filosofia é dar-lhe nome às cousas que passam, e conceptualizar a realidade para poder a compreender e, assim, poder viver melhor.

O que fazem os filósofos é sistematizar o pensamento que alveja nas manifestações culturais. A filosofia de um povo exprime-se através do conjunto da sua produção literária, narrativa, poética ou ensaística, da sua estética e da sua ética, e é daí que podemos extrair tanto os conceptos que supõem um problema existencial como, pelo contrário, achar a solução aos reptos de cada tempo, as vezes condicionados por eventos históricos pontuais.

Um ejemplo muito claro destas relações entre a história e o pensamento som o Messianismo e o Sebastianismo no caso exclusivamente português e o saudosismo no caso galego-português. Os primeiros som ideias que nasceram a partir de feitos concretos da história portuguesa e o segundo é uma experiência comum a ambos territórios. A Galiza e Portugal têm na saudade um conceito filosófico tanto como um problema ainda não solucionado. Todo isto leva-nos a considerar duas cousas importantes.

A primeira é a ligação entre filosofia e cultura. Não é casualidade que as autoridades franquistas ficaram nervosas quando nos anos cinquenta Ramón Piñeiro publicara um artigo em galego sobre a filosofia existencial alemã. É como reconhecer que a cultura galega por si própria tinha capacidade de reflectir e de o fazer para poder se compreender com autonomia própria. Ou seja, se há filosofia, há uma forte cultura de seu e não só «folclorismo lingüístico», algo intolerável para o franquismo no poder de ontem e para o franquismo sociológico de hoje.

Não é casualidade que as autoridades franquistas ficaram nervosas quando nos anos cinquenta Ramón Piñeiro publicara um artigo em galego sobre a filosofia existencial alemã.

A segunda consequência é que o feito de que, por ejemplo, a Galiza tinha necessidade de pensar a saudade, isso não pode fazer, como foi feito, que este concepto seja ultrapassado, ou seja, que lhe sejam atribuídas características para além da sua realidade histórica, actuando como um espelho no qual se reflectem os anseios por uma identidade diferencial do povo galego. Já o feito de que poda haver um pensamento galego onde as grandes correntes do pensamento europeu podam ser tratadas e interpretadas de acordo com os parámetros da cultura galega seria suficiente para defender a existência de uma filosofia galega. O que não é necessário é fazer de uma das suas peculiaridades, como a saudade, o objeto único da reflexão filosófica.

Carolina Michaelis de Vasconcelos

Não há dúvida de que a saudade é um concepto importante para Galiza e para Portugal. Por ejemplo, a Carolina Michaelis de Vasconcelos (1851-1925) dedicou-lhe parte da sua investigação filológica há mais de cem anos, incluíndo a literatura galega nas suas referências. Piñeiro, Torres Queiruga e outros intelectuais da oposição ao franquismo também dedicaram os seus esforços para sistematizar a relevância desta emoção elevada a conceito filosófico. Mas a filosofia não pode ficar em um só conceito.

Uma filosofia galego-portuguesa ainda está por fazer apesar de ter já alguns temas que nos permitem pensar em conjunto. As circunstâncias históricas da Galiza e de Portugal foram distintas durante muito tempo, mas agora vivemos uma conjuntura geopolítica de convergência favorável à colaboração filosófica. Não se trata de ir raia para cima e raia para baixo em busca de um novo ou uma nova Beauvoir, Foucault, Arendt ou Habermas. Se trata de pensar as claves da cultura de hoje da nossa perspectiva e por todos os meios intelectuais possíveis. Desta reflexão emergirá a filosofia.

As circunstâncias históricas da Galiza e de Portugal foram distintas durante muito tempo, mas agora vivemos uma conjuntura geopolítica de convergência favorável à colaboração filosófica.

Uma filosofia galega-portuguesa não será que alguém em Compostela escreva un artigo sobre Platão ou Wittgenstein em português, senão que será aquela que faz preguntas sobre a realidade da Galiza e de Portugal e tentará respondê-las. Como é a nossa ética pública, que significa para nós a beleza, como nos relacionamos com a terra, que valores ou anti-valores vivem os jovens que percebem a droga como solução ou moda aceitável, que factores influem para que galegos e portugueses vivamos de costas quando temos uma origem comum e a mesma língua, por que tantos galegos mantém a visão franquista sobre o território e a língua, que apreciamos como símbolos, que consideramos transcendente, e tantos outros temas mais, seriam os que importariam a uma filosofia galega e portuguesa.

No entanto, para chegar lá, primeiro temos de pensar juntos e, para isso, temos que poder fazê-lo na mesma língua, lendo e criando uma literatura, uma arte, uns símbolos em comum nos que a visão sobre a realidade se exprima antes de ser repensada criticamente. Depois, teremos de criar espaços institucionais que façam possível o encontro filosófico, ainda mais do que já é feito. Assim começaremos a dispor de uma filosofia galega e portuguesa, que é o mesmo que dizer que haverá um espaço de diálogo permanente para um âmbito de cultura simultaneamente galega e portuguesa.