O Dia das Letras: os alicerces da soberania cultural

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Às vezes, temos a realidade tão à nossa frente que não vemos o seu significado global, a sua transcendência para a sociedade. Na Galiza todos sabemos que temos um dia das letras que é, ademais, férias. Surpreendente. Os dois dias galegos no calendário são o Dia das Letras Galegas e o Dia da Pátria. Mas o primeiro é, sem dúvida, muito especial, porque sem ele o segundo ficaria um pouco manco. Vou explicar o porquê.

Nos calendários de todas as comunidades, mesmo na Galiza, há catorze dias de férias no calendário anual. Além das duas que têm um caráter internacional, o primeiro de Maio e Ano Novo, as outras são estatais ou religiosas. A Galiza é a única comunidade que celebra e homenageia a sua criação literária mais sobranceira por si própria, sem estar ligada a nenhuma outra tradição ou festividade. Nem Jordis, nem Iagos, nem nenhuma iniciativa da indústria editorial que sirva de pretexto. O objeto da celebração são a língua e a cultura sob a forma da literatura. Isto tem um caráter anómalo e, portanto, merece uma reflexão, precisamente o ano no que é homenageado o pai do Dia das Letras, Fernández del Riego.

Os planos que Fernández del Riego e outra gente do ámbito intelectual como Ramón Piñeiro tiveram para a Galiza do futuro não partilhavam os mesmos alicerces que tinha a Espanha franquista daquele tempo. A Galiza sonhada deveria ter uma fundação diferente ao mediocrismo da ditadura, que se baseava na anti-cultura, na censura e no desprezo pela inteligência, que já vinham de longe. Vejamos um exemplo.

A Galiza sonhada deveria ter uma fundação diferente ao mediocrismo da ditadura, que se baseava na anti-cultura, na censura e no desprezo pela inteligência, que já vinham de longe.

Nos Jogos Florais de agosto de 1912 que foram celebrados em Pontevedra, Miguel de Unamuno descrevia a Espanha de então não muito diferente à medíocre imagem que depois seria norma no franquismo: a tauromaquia era vista como um desporto, como a política e a literatura; o teatro era um passatempo que não devia molestar a ninguém («perturbar la digestión», dizia ele), sobre todo de alguns; e ainda a religião tornava-se em beneficência para não comprometer o estado das coisas. A educação nas artes era um cosmético e a ciência era só apoiada se servia à advocacia ou à engenharia. Assim era a Espanha de há cem anos, a Espanha do franquismo, e mesmo de algum jeito a Espanha de hoje.

Com esta pobre herança em cima, nos anos cinquenta e sessenta a ideia de ter um povo inteiro celebrando a literatura duma língua encurralada era um sonho digno de pessoas muito optimistas. Mas o sonho tornou-se realidade.

Nos anos cinquenta e sessenta a ideia de ter um povo inteiro celebrando a literatura duma língua encurralada era um sonho digno de pessoas muito optimistas. Mas o sonho tornou-se realidade.

Esta realidade tem uma força simbólica que vai para além do que os seus promotores pensaram inicialmente. Hoje, no Dia das Letras Galegas não só é celebrada a obra dum escritor ou escritora, ou a literatura galega mesma; não, não só, é mais que isso. Esse dia é celebrado o facto de que a base simbólica na qual a Galiza assenta é a sua cultura, o seu intelecto, a sua poesia, o seu pensamento, a sua imaginação, a sua capacidade criativa.

O espírito do Dia das Letras interroga-nos todos os anos para verificar se ainda temos vontade de ser uma cultura livre que confia na sua capacidade criadora e na sua inteligência ou se, pelo contrário, desistimos, baixamos os braços e deixamo-nos colonizar pela mediocridade que pode vir de fora.

Eu quero pensar que a verdadeira intenção de Fernández del Riego foi evitar o colonialismo cultural, porque um povo não pode ter soberania política sem primeiro desfrutar duma independência cultural. E a independência não é virar-se sobre si mesmo, como o mito espanhol da resistência «numantina», senão a capacidade de ter iniciativa própria e liderar no mundo da criação de ideias em condições de igualdade com as demais línguas e culturas.

De facto, quando estamos a falar do Dia das Letras não falamos da doutrina oficial ou do folclorismo pitoresco da Xunta, senão duma reflexão sobre que grau de soberania cultural atingimos no último ano. Por outras palavras, é uma maneira de dizer que nós somos os soberanos da nossa cultura e responsáveis dela.

A Galiza na que eu creio e a que eu vejo no Dia das Letras é a Galiza criadora de cultura, que cultiva a inteligência e que é consciente da sua liberdade e da sua soberania: a Galiza que vira as costas à mediocridade, à anti-cultura e à grosseria intelectual. Nesta época em que vivemos, uma festividade com esta força simbólica é uma auténtica anomalia que merece uma defesa cerrada de todos os galegos e as galegas e que nos prepara para olhar doutro jeito para o vindouro Dia da Pátria, porque, como bem sabem os colonizadores de todos os tempos, não há soberania política possível se previamente não há soberania cultural.

Máis de Carlos Segade