O paradoxo do linguicismo castelhano

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Além das motivações que Ayuso possa ter tido para esconder os seus problemas pessoais com uma cortina de fumo, o certo é que a sua reação agressiva e espanholista na conferência dos presidentes tem uma boa aceitação por uma parte do seu eleitorado. Como vivo em Madrid há mais de trinta anos, muitos deles como professor, a violência verbal não me surpreendeu. O velho lema da repressão do pós-guerra, «si eres español, habla en español», ainda está vivo em muitos eleitores da direita —os seus assessores sabem-no— e é muito fácil agitá-los.

A reação contra as línguas peninsulares atenta não só contra o artigo três da Constituição, mas também contra os acordos a que o Estado espanhol aderiu, por exemplo, a Carta Europeia das línguas regionais ou minoritárias do Conselho de Europa (2001). O último relatório do comité de peritos (junho 2024) diz que Espanha ainda tem iniciativas a desenvolver em questões de igualdade das línguas.

A atitude de pensar que há uma língua que tem mais direitos do que outras é o que, desde os anos noventa do século passado, o professor Phillipson chamou linguicismo, que é definido assim: «Ideologias, estruturas e práticas que são utilizadas para legitimar, efetivar e reproduzir uma divisão desigual de poder e recursos (materiais e imateriais) entre grupos definidos com base na língua».

O linguicismo é uma rede complexa de práticas e de ideias que caracterizam, sobretudo, o colonialismo e o imperialismo linguístico. Na prática, leva à implantação de um bilinguismo de tipo subtrativo, através do qual se impõe uma língua estrangeira como língua veicular em substituição da língua primeira. O resultado final é uma diglossia, com uma língua de prestígio e uma língua de origem reduzida ao âmbito familiar ou local, sem registo culto.

Porém, a némesis do linguicismo castelhano não vem do uso do catalão ou de qualquer língua nacional nas conferências dos presidentes ou no Congresso dos deputados. Aqui, em Madrid, vivemos um paradoxo digno de uma comédia que vou tratar de explicar.

Embora não tenha feito um estudo empírico para sustentar a minha hipótese, com a minha experiência como professor de linguística posso testemunhar o seguinte. Há três fatores que coexistem em Madrid. Por um lado, temos o espanholismo identitário que repete os mesmos lemas dos antigos reacionários. Para eles, as línguas que são faladas no Estado espanhol que não são o castelhano não têm lugar no património cultural espanhol e o Estado só pode ser um Estado castelhano.

Por outro lado, temos a atitude das pessoas perante o seu uso da língua. Na minha experiência, o nível de conhecimento da própria língua e literatura é muito escasso. Nos alunos que chegam a universidade pode corresponder a um B1 ou B2 (segundo o Quadro Europeu Europeu de Referência para as Línguas), ou seja, intermédio, no melhor dos casos. Isto é resultado da ignorância e, pior ainda, da indiferença. Não conhecem a sua língua e, além disso, não lhes importa. A ignorância se pode evitar com estudo, mais a indiferença é quase impossível de superar. E, na minha experiência, há uma quase total indiferença face ao conhecimento da língua. 

O paradoxo continua com este remate: o inglês tornou-se já a língua de referência das classes altas e aspiracionais de Madrid, precisamente as que votam massivamente a direita espanholista. Ainda há colégios (privados e caros) em Madrid cujos alunos falam o inglês entre si fora da escola. O inglês funciona como um marcador de estatuto, sobretudo quando é falado sem sotaque marcado, o que denota uma formação imersiva e prováveis estadias no estrangeiro. O castelhano, para eles, é a língua que não é necessário falar nada mais que na rua. Há jovens que já vivem essa diglossia em Madrid, assente no pragmatismo neoliberal, fruto da propaganda anglo-americana, à qual as classes altas e aspiracionais são mais permeáveis.

Em consequência, temos uma imposição do castelhano sobre as demais línguas do Estado, e por outro lado, um desconhecimento profundo da língua e um abandono dela em favor do inglês. Tudo no mesmo segmento do eleitorado.

A evidência que temos, e isto já não é experiência pessoal, mas resultados da investigação científica, é que é mais fácil aprender uma língua apoiada pelo conhecimento de outra. O que tecnicamente é chamado bilinguismo aditivo. Segundo o INE, 96% dos espanhóis falam e dominam a língua castelhana, mas o 57,2% não conhece nenhuma outra além do castelhano, um facto que explica (embora não justifique) as atitudes de pouca sensibilidade para com as outras línguas.

O abandono do estudo da língua castelhana em Madrid e no resto de Espanha não é, como poderia parecer, uma boa notícia. A sensibilidade linguística só pode ser adquirida através do conhecimento das línguas, começando pela própria. O seu estudo comparado, o facto de o castelhano ser apenas uma entre as várias línguas peninsulares, e o respeito pelas demais línguas só pode ser cultivado através do estudo rigoroso da língua nas aulas, com exigência e consciência da complexidade dos fenómenos linguísticos.