Tarde piache!

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Descansando das fadigas bélicas rondava o curral duma boa casa um faminto soldado galego. Não por fazer mal, mas por apagar um pouco as ciladas da fome, raposeou-lhe um ovo chocado a uma coitada galinha. Já ía o ovo garganta abaixo quando sentiu lhe sair das entranhas o piar do pintinho. Tarde piache! pensou para si o estremecido soldado e engoliu. E é que para além das batalhas temos de compreender que em todos os tempos e lugares é sempre mais negra a fome.

Foi tal a fama do comedor de pintinhos que em 1615 o grande escritor de Cervantes e Saavedra colocou a mesma piada na boca de Sancho1, feito já governador da ínsula Baratária. Era o momento em que rejeitava o posto de governador, que um pastor como ele não era dado a tantas leis, mandados, rúbricas, e ainda menos aos trabalhos da defesa militar. Sancho Pança, que na altura morria de fome por decreto do seu impertinente médico, queria abandonar a corte que o mantinha sujeito ao governo e recuperar a liberdade campesinha. Tarde piache! disse Sancho ao mata-sãos que o retinha naquele posto de perdição, enfiando logo o caminho de retorno à casa.

E aconteceu que em Castela adotaram a expressão galega, tal e qual, com a mesma forma e significado. Dito por Pintos no seu vocabulário2 em 1865, que não é piada de pinto nem de pintinho, que foi certo o que Pintos deixou dito:

Expresión pura gallega, que tomaron y usan del mismo modo los castellanos.

E desta feita chegou a expressão às Américas da mão de galeg@s, castelhan@s e quiçá também do próprio Sancho. E ali, nos países de fala castelhana da América Latina, o ditado popularizou-se e adquiriu estilo próprio acrescentando o termo pajarito (passarinho), feito o pintinho já um bom polo, frango ou gavião, que de tantos séculos na goela dos comedores havia de nos medrar um pouco nem que fosse por involuntária ceva.

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Rascunhos Dom Quixote – Sargadelos

Apesar dos séculos de vida Tarde piaste, pajarito! é a viva expressão da morte das cousas que precisam do seu momento. Não só é falar demasiado tarde, mas definição de realidades que são possíveis unicamente dentro do seu breve momento e que, fora dele, já não serão mais possíveis. É a crueza do instante crítico em que a vida perde a sua importância e sucumbe devorada por instintos mais poderosos e inevitáveis.

A nossa língua viajeira retornou transformada do outro lado do oceano e há poucos dias aplicou a expressão ao recém demitido Secretário Geral dum conhecido partido político espanhol. Qual Sancho Pança, o ex-Secretário anunciou o abandono das responsabilidades que o sujeitavam a ser governador da ínsula Baratária. Mas, contrariamente ao sábio escudeiro, o ex-Secretário não declarou algo fundamental. Algo que deveria ser próprio das pessoas com responsabilidades sociais e políticas. Algo que teria de fazer parte de qualquer cargo institucional dedicado ao serviço do comum. Declarava Sancho no século XVII:

Vuesas mercedes se queden con Dios, y digan al duque, mi señor, que desnudo nací, desnudo me hallo, ni pierdo ni gano; quiero decir, que sin blanca entré en este gobierno, y sin ella salgo, bien al revés de como suelen salir los gobernadores de otras ínsulas […].

O Governador atualmente demitido parece um pouco falto da honradez e dignidade do bravo escudeiro cervantino. Por isso e por quanto no mundo há de torto e precisado de emenda, quando o ex-Secretário Geral anunciava a intenção de organizar um governo alternativo, intenção que nunca chegaria a realizar por ser aquele o preciso momento da sua demissão, foi o espírito de Dom Quixote e Sancho juntos quem replicou desde uma nova Mancha novelada com o galaico eco dos séculos: Tarde piache!.

NOTAS:

1 El ingenioso hidalgo Don Quixote de la Mancha. 2.ª parte, cap. LIII: “Del fatigado fin y remate que tuvo el gobierno de Sancho Panza”.

2 Dados tomados do Dicionário de Dicionários da Língua Galega, http://sli.uvigo.es/DdD/ (UVigo). A expressão aparece no Vocabulário de Pintos (1865), no Dicionário de Valladares (1884), no de Filgueira, Tobio, Magarinhos e Cordal (1926) e no do académico Eladio Rodrigues (1864-1949) quem inclui uma explicação da sua origem. O primeiro parágrafo deste artigo é uma recriação pessoal dessa explicação.