O pianista somos nós

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Fotograma do filme O pianista (2002) de Roman Polanski, ao piano o ator Adrien Brody.
Fotograma do filme O pianista (2002) de Roman Polanski, ao piano o ator Adrien Brody.

São numerosas as canções de amor porque o amor nos destroça o coração. Precisamos da música e das palavras para não nos sentir tão sozinh@s, tão únic@s, tão desconsolad@s. Escutamos uma canção de amor e pensamos que somos normais, que o amor é impossível, trágico, inesperado, terrível. Com os primeiros acordes dum acompanhamento simples, ou os obstinados batimentos dum ritmo conhecido, entendemos que não somos monstros, que não somos seres alucinados, que é humano o que sentimos. Depois as palavras melódicas no-lo explicam mais e cantamos baixinho, ou gritando, a letra da canção que nos aninha, que nos protege do frio cosmos do amor. A música salva-nos do deserto do amor. Mas não nos salva do amor.

Talvez por isso Rosália Castro, que sabia destas cousas, escreveu ao pé dos seus cabeçais o famoso poema desesperado, deprimido, escuro. A negra sombra fazia-lhe mofa qual amor despeitado. Talvez por isso um génio musical soube achar a melodia precisa, a combinação exata, a receita que convertia a negra sombra na bela canção que hoje tod@s cantam. O génio chamava-se João Montes e não se lhe conheceu namorad@. Montes compôs a canção e nos salvou das negras sombras da vida.

Na vida, esse drama trágico e cómico que os gregos coreavam para refugiar-se das negras sombras, nós somos o pianista sensível e aplicado a traçar o edifício harmónico da canção. O pianista anónimo sem cuja interpretação as melodias famosas cairiam de tom em tom até ao estropício final, qual pesado capitel sem colunas nem base. Não nos enganemos, esse pianista que constrói a canção, o pianista que nos salva, somos nós.

Acompanhamo-nos em sentimentos, em harmonias, em dissonâncias. Construímos a dorna que flutua no deserto da vida. Com trabalho e constância, a cada dia melhoramos as nossas interpretações, aprendemos a ler a partitura, improvisamos, dirigimos a canção. Alguns perdem o ritmo em debates estéreis, insistem em não entender a língua musical, aprofundam na negra sombra, dividem, não se salvam. Os mais aprendem a canção e, com ela, a amar e a viver.

Há poucos dias soou a Negra Sombra de Rosália e Montes numa homenagem que o provisório governo galego dedicou às vítimas da Covid-19. Em tempos de pandemia, as canções são ainda mais necessárias. Duas conhecidas personalidades galegas da música, cujos nomes não é preciso lembrar aqui, interpretaram a bela melodia e letra sustentadas pelo labor intenso e persistente dum anónimo pianista.

Há poucos dias soou a Negra Sombra de Rosália e Montes numa homenagem que o provisório governo galego dedicou às vítimas da Covid-19. Em tempos de pandemia, as canções são ainda mais necessárias. Duas conhecidas personalidades galegas da música, cujos nomes não é preciso lembrar aqui, interpretaram a bela melodia e letra sustentadas pelo labor intenso e persistente dum anónimo pianista. Baldo, músico catalão, construía o acompanhamento da canção que nos salva sem ele ser nomeado em nenhuma crónica, resenha ou notícia. O seu nome e intervenção eram silenciadas nos meios. Igual que o nome do próprio compositor da canção.

Em tempos de pandemia percebem-se melhor os matizes. Não nos compram por cinquenta dólares, nem por duzentos e cinquenta euros. Não nos metem gato por sanidade e educação de qualidade. Não nos homenageiam com melodias cantadas por famosos se ocultam o nome do autor da canção, o nome do pianista que a interpreta, o nosso nome. Os nomes dos nossos mortos, dos nossos parentes, das vidas que acharam um desesperado final são a nossa composição, precisam ser ditos, fazer parte da letra e da música. Nós, anónimas pianistas, construimos a base, as colunas, os fundamentos da canção que nos salva de morrer por falta de ar, ou de amor. A nossa ária nos oxigena, nos devolve à vida, dignifica o nosso nome.

Aprendam a honrar, provisórias autoridades, o digno nome do pianista povo. Ou calem para sempre.