Prisciliano não é um “heresiarca”. I Romaria de Prisciliano

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O sábado 27 de abril celebramos a I Romaria de Prisciliano na Eira de Xoana (Ramil). Mil seiscentos anos depois das que se celebrariam na Galiza, após a sua morte em Tréveris no ano 384, e após vir os seus restos quatro anos depois de volta à terra que seguramente o viu nascer. Possivelmente a Aseconia, à necrópole da villa da família senatorial a que pertencia. Sulpício Severo, o historiador que escreveu sobre ele poucas décadas após o seu martírio, fala dessa família. Ainda que ele não precise o lugar de enterramento na Galiza, fala dos seus “solenes funerais”, de que a sua tumba converteu-se em lugar de peregrinação e devoção, e o seu nome foi lembrado por décadas nos livros da liturgia cristã, como diz a sua Chronica e completa o historiador H. Chadwick (Prisciliano de Ávila). Possivelmente, sobre os restos do mártir topados na necrópolecitada e convertidos nos presuntos restos de Santiago Apóstolo, erguer-se-ia quase cinco séculos depois a igreja de Compostela.

A romaria da Eira de Xoana teve todos os elementos típicos duma romaria galega: a comida, as palestras deste que escreve e de Paco Boluda; a beição da imagem do santo e o reparto de estampas, pregão a cargo de Iolanda Aldrei e preces de Pepe Salvadores, procissão com a imagem desde a Eira até um cruzeiro perto acompanhada com música da gaita de Xosé Mosqueiro e o whistle de Xavier Foz, para rematar com um recital poético-musical com Adela Figueroa, A. Gil, A. Ferreiro, J. M. Barbosa, Concha Rousia e Eladio Rodriguez; junto com as gaitas irlandesas de C. O’Lery e D. O’Tool.

Mas quero voltar sobre o nosso mártir, Prisciliano: um bom cristão convertido em “heresiarca” pela injusta condena da Igreja do seu tempo e dos séculos posteriores. Insulto que foi repetido acriticamente por historiadores religiosos e laicos ao longo de mais de mil quinhentos anos; e que segue a repetir-se acriticamente hoje, mesmo nas páginas deste Diário, alcume que invito a abandonar para sempre.

Como tenho provado com abundante documentação nos meus livros Prisciliano na cultura galega. Un símbolo necesario (Galaxia 2010, 2ª ed. 2012) e Prisciliano, um cristão livre. O seu eco na cultura galaico-portuguêsa (Novembro, 1ª e 2ª ed. 2017), Prisciliano não foi um “herege” que predicasse contra a fé da Igreja, mas um bom cristão que quis que a Igreja voltasse aos princípios de Jesus Cristo e do Evangelho, corrompidos já no século IV, desde que esta “se deitara nos braços de Constantino”, como denuncia Curros, e se convertera numa instituição com todas as corruptelas que acompanham sempre o poder político e social.

Quem foi, logo, Prisciliano? Tenho-o definido com cinco pontos fundamentais:

1) Um bom cristão que queria ser fiel seguidor de Jesus. Predicador fascinado pela pessoa e o anuncio de Jesús de Nazaret, conseguiu um grande sucesso; as comunidades priscilianistas multiplicaram-se por toda a Hispânia, mas sobretudo, na Gallaecia. Uns bispos corruptos sentiram questionar a sua ascendência entre os seus fregueses e iniciaram uma perseguição que fracassou nos seus começos e Prisciliano foi consagrado bispo de Ávila. Más anos depois conseguiram que fosse condenado e levado com alguns dos seus seguidores até o patíbulo em Tréveris.

2) Um teólogo genial e ortodoxo. Como sabemos hoje ao conhecer os seus escritos, depois de muitos séculos perdidos: os seus Tratados, os seus Canones e outros livros mais. Assim o reconheceu o patrólogo e bispo galego Uxio Romero Pose: “Prisciliano, ademais de ser um leader muito singular, era ante tudo um teólogo… Merece um lugar especialíssimo na história do pensamento cristão… É o escritor mais importante na Hispânia do s. IV”.

3) Falsamente condenado como herege por teólogos como Agostinho e Jerónimo, bispos e papas como Leão Magno, os concílios de Toledo e de Braga, e escritores contemporâneos como López Ferreiro ou Menéndez Pelayo. Foi reabilitado mais de mil anos depois; no s. XVI, mas sobretudo após a aparição dos seus Tratados em Würzburg(1889), por historiadores e teólogos como Babut, Chadwick, Goosen, etc.

4) Um asceta criador de comunidades e possivelmente fundador do monacato hispano. Um profeta e um rebelde contra o poder estabelecido, discriminatório com os pobres e as mulheres.

5) Um mito e um símbolo necessário para a Galiza; alicerce da nossa cultura e da nossa identidade como povo.

Oxalá continue esta romaria ano após ano, o último sábado antes do 1 de maio; o Bealtaine, dia do esplendor da luz. Pois Prisciliano é uma luz que nos ilumina a todos os galegos.

[Este artigo foi publicado originariamente no Nós Diario]