Portuguesismo e autocolonização

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Resposta ao artigo de A. López Carreira En defensa de Galicia

publicado no jornal Sermos Galiza em 23 de junho de 2017.

 

“A verdade é sempre revolucionária” é uma ideia tomada por Gramsci do nobel de literatura em 1915, o francês Romain Rolland, retomada depois por múltiplas autoras. Se os galegos fôssemos franceses, hoje não haveria problemas linguísticos porque todos na Ibéria teríamos esquecido as línguas próprias em favor do castelhano. Em linhas gerais, temo-nos afrancesado um pouco, mas por fortuna ainda há por aí autocolonizad@s a falarem portuguesismos para nos lembrar que somos galeg@s.

Um dos maiores danos que nos trouxe a falsa Transição, da ditadura franquista à última restauração do Reino da Espanha, foi o impulso nas décadas de 70 e 80 dumas elites da língua (pessoas com nomes e apelidos de tod@s conhecidos) que mantiveram, provavelmente por alguma ordem dada, uma linha antiportuguesa e, portanto, antigalega de interpretação das nossas falas. Os danos que causaram na população observam-se no estranho senso comum que conseguiram produzir graças à ação coordenada dos governos regional e estatal. Este senso comum, tão pouco lógico, compõe-se de várias ideias que, como fungos da pataca, se introduziram nos miolos da gente galega.

A primeira ideia-força linguística dessa Transição é que o Galego tem de ser diferente do Português, e se não for, é um problema a resolver. A segunda exige a máxima indiferença com a Filologia para poder aplicar com legitimidade o argumento da “fala do povo”. A terceira emite um falseamento do conceito de língua que permite empregar formalmente o alfabeto castelhano para a escrita aplicando o ditado mentireiro que reza “escreve-se como se fala”. Outros enganos inoculados posteriormente foram a ideia da inexistente “normativa oficial” e a confusão entre oficialidade e co-oficialidade, esta última também inexistente na legislação fundamental.

As pessoas afetadas pela síndrome deste senso comum perverso, apesar de tudo -milagres da Gallaecia- costumam identificar bem as consequências do desastre: 1) deterioro do sistema linguístico e 2) ruptura da transmissão geracional. O que não enxergam tão bem são as causas. Para estes pacientes as “razões estruturais” são o abandono da língua, a indiferença da maior parte da sociedade, a autocolonização (pelo castelhano). Se refletirmos, veremos que todas as anteditas não são outra cousa que consequências. Do que? Tanto da ação político-linguística oficial quanto do abafamento social da oposição que nasceu contra essa ação. O isolacionismo ofereceu um modelo de língua galega fraco e sem hipótese de concorrer com o gigante espanhol, nem sequer com a inestimável ajuda do esbanjamento de dinheiro público em tantas campanhas normalizadoras. Lembremos, primeiro era normalizar e depois normativizar. Se tivermos aguardado pelo sucesso da “normalización” agora estaríamos mort@s e sentad@s.

 

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Mas o mais grave de tudo é que a síndrome não permite identificarmos bem o foco da infeção. Os sucessivos governos da Xunta foram por diante da população nos aspectos normativos e formais,  mas não para procurar o desenvolvimento ou o aperfeiçoamento da língua. A “normativización” pagada com dinheiro público e incutida contra a razão filológica respondia a outros objetivos. Um deles era o de organizar uma aparência de idioma suficientemente distanciado da língua portuguesa como para justificar a renúncia à verdade filológica. Os doentes em estado crítico culpam o nacionalismo por não ter conseguido fixar uma norma isolacionista única. Porém, se a memória não me falha, os organismos oficiais que se ocupam da “normativización” estão constituídos por integrantes desse nacionalismo. É este um facto digno de comentário: Os elaboradores do fracasso normativo, salvo alguma exceção, são nacionalistas galegos a trabalharem para o governo da Xunta que costuma ser nacionalista espanhol. Que fizeram que não conseguiram fixar uma única norma? Não será que ao distanciar-se da verdade filológica eles mesmos criaram o caos normativo?

 Como fazia o Secretário de Política Linguística da Xunta há poucos dias, quando afirmava que é precisa mais demanda para fazer cumprir uma lei, a síndrome diz que não há demanda social do idioma e com isso justifica todos os desastres enviados pela Providência. Que pessoas de esquerdas pouco treinadas nas cruas artes capitalistas comprem os argumentos do inimigo e ignorem que a oferta é a que gera a demanda pode até ser compreensível. O que já não se entende é que a direita galega ignore esse princípio básico das leis do mercado e faça gala dessa mesma ignorância numa comissão de Cultura.

 

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 A estas alturas a confusão é tal que os afetados já não sabem a quem hão de acudir para achar alguma explicação às suas febres. Assim, batem no cão das pulgas e culpam o nacionalismo da sua atual orientação ao português, como se tivessem assinado um pacto com o diabo reintegracionista. O galego não pode ser português porque deixaria de ser galego, opinam, empregando o mesmo raciocínio de quem afirma que o homem não pode ser humano porque deixaria de ser homem. O galego não pode ser português porque passaria a ser um dialecto, insistem, esquecendo toda a geração neofalante que o reintegracionismo está a impulsar.

Nunca foi dito “Galiza”, mas “Galisa”. E tampouco foi dito “verdade”, mas “berdade”. Porém, não se escreve nem Galisa, nem Berdade. Dizia o professor Carvalho que falar não é escrever e que quem não conhece a sua língua acaba por defender como próprio o que é alheio. Faz-nos falta mais portuguesismo e uma boa dose da melhor autocolonização, porque esta síndrome borbónica não nos deixa ler Galiza, beleza, grandeza. Não sabe que Rodriguez e Rodrigues soam igual. Nunca olhou o adjetivo “portugueza” e desconhece como se diz Luiza. Mas a doença não é mortal, tem cura. Chama-se aprendizagem da língua comum.