Mais que meios, são infraestruturas. É interessante pensar, a partir desta ideia, na relevância e implicações da incorporação de certos instrumentos nas nossas vidas, desde projetos de planeamento urbano a inovações tecnológicas. Mais do que simplesmente aperfeiçoar os meios para alcançar os fins que uma sociedade ou um indivíduo considera relevantes, a infraestrutura altera qualitativamente a própria forma da sociedade; atua como um novo esqueleto sobre o qual a formação social desenvolve diferentes músculos, movimentos e significados, sofrendo uma verdadeira metamorfose. A estrada foi a grande infraestrutura sobre a que se edificou o capitalismo do século XX: não se limitou a melhorar as funções dos antigos caminhos, mas concebeu um novo país e um mundo novo, baseados na mobilidade de pessoas e mercadorias, no carro particular e na gasolina. O turismo, a grande cidade, o hipermercado ou o polígono industrial são impossíveis sem a estrada. O mundo capitalista desenvolveu-se no século passado com base num Estado que construía estradas, pelas que circulavam os veículos fabricados pelas marcas icónicas do industrialismo, e que à sua vez eram alimentados com os combustíveis que forneciam as grandes petroleiras.
A estrada foi a grande infraestrutura sobre a que se edificou o capitalismo do século XX: não se limitou a melhorar as funções dos antigos caminhos, mas concebeu um novo país e um mundo novo, baseados na mobilidade de pessoas e mercadorias, no carro particular e na gasolina.
De forma análoga, a Internet parece ser a infraestrutura estratégica do capitalismo do século XX, e o smartphone joga nos nossos dias o mesmo papel de ferramenta imprescindível, símbolo e fetiche que o carro particular desenvolveu no século passado. O telemóvel individual e ligado sempre à rede não é mais um meio, mas a infraestrutura sobre a que o capitalismo neoliberal constrói o seu mundo. Ninguém pode escapar ao facto de lhes terem sido impostas novas formas de trabalho, comércio, lazer, relações sociais, participação política ou controlo policial, que nada têm feito para melhorar a vida das pessoas. Mas o que só nos é apresentado como inovação também implica necessariamente uma perda: a destruição das formas sociais, culturais e materiais sobre as quais as novas infraestruturas abrem o seu caminho. Surpreende a fraqueza do discurso e da prática crítica da esquerda face a este tipo de processo, porque é assim que o mundo está a ser transformado e destruído pelo capital: não com base na deliberação, planeamento e tomada de decisões políticas, mas na implementação autoritária de infraestruturas técnicas que afetam irreversivelmente o nosso modo de vida.
Quando as infraestruturas não só determinam como vivemos ou nos movemos, mas também como olhamos, ouvimos e –em suma– percebemos tudo (incluindo outros), o que é destruído e transformado é mesmo a nossa forma de sentir e pensar sobre o mundo. Já sabemos que o cérebro está a adaptar-se à velocidade e à brevidade que caracterizam o conteúdo digital, bem como à saturação dos estímulos, tornando-se cada vez mais incapaz de retardar a atenção e o esforço intelectual. As mentes formadas com o smartphone parecem-se muito aos estómagos alimentados com a fast food. O sensacionalismo coloniza toda a informação, as aparências emasculam toda a realidade, o espetáculo molda toda a ação, a transiência domina o tempo, a “atualização permanente” torna impossível que o conhecimento, as relações e as vidas sólidas sejam lentamente sedimentados. A comunicação é vítima do ruído constante, e a pausa e o silêncio geram angústia e incompreensão, como se a vida se desenvolvesse num videojogo ou num clip musical. É difícil que não haja nenhuma relação de causalidade entre o crescimento alarmante dos problemas de saúde mental que se deteta na última década (e, significativamente, entre adolescentes, e após o impulso digital que provocou a pandemia) e a penetração maciça das redes sociais e as suas regras para estar no mundo.
Quando as infraestruturas não só determinam como vivemos ou nos movemos, mas também como olhamos, ouvimos e –em suma– percebemos tudo (incluindo outros), o que é destruído e transformado é mesmo a nossa forma de sentir e pensar sobre o mundo.
O filósofo Byung-Chul Han apontou com lucidez e profundidade para a construção neoliberal do outro (na verdade, a sua destruição) que opera através do smartphone: “O hábito digital diz: tudo deve estar imediatamente disponível (…). E o único que se pode fazer com um mundo que só consta de coisas disponíveis é consumi-lo”. As redes sociais, com a sua aparência de lojas online, contribuem poderosamente para que as relações entre as pessoas (e das pessoas consigo mesmas) se mercantilizem. “Os meios digitais favorecem a desaparição do outro –conclui este autor–. Reduzem a resistência do outro tornando‑o disponível. Somos cada vez menos capazes de perceber o outro na sua alteridade [isto é, na sua opacidade e indisponibilidade, a fonte de todo o mistério]. Uma vez que o outro é privado da sua alteridade, já só podemos consumi-lo”.
Sabemos que estas redes são, na verdade, enormes centros comerciais que rentabilizam até os aspetos mais íntimos do nosso ser 24 horas por dia, mas a sua penetração também tem sido absoluta no meio de movimentos que se proclamam anticapitalistas, e entre as pessoas que fazem parte deles. Talvez isto guarde alguma relação com o triunfo dum certo sentido comum neoliberal que se constata entre as últimas gerações de ativistas de esquerda. Quem aprende desde a adolescência que a sua imagem é um produto que tem de saber gerir, e que as amizades são contadas de forma muito semelhante aos clientes, internaliza os valores do mercado na profundidade da sua conceção do que é ser humano. Chegados a este ponto, não é tão surpreendente que na esquerda prendam discursos mesmo em favor da prostituição. Nada escapa agora ao poder da sociedade de mercado para profanar tudo, ou seja, para derrubar todas as barreiras morais e culturais que nos impedem de perceber amizades, montanhas ou corpos como bens de consumo. Byung-Chul Han chama a esta perda da qualidade e mistério das coisas, em virtude da qual o mundo interior é reduzido a objetos disponíveis para satisfazer os apetites de cada um, “o inferno do igual”. O que caracteriza a mercadoria não é tanto o preço pago por ela, mas a sua condição de bem consumível, e esta é a forma como todos os bens geridos e percebidos a partir do smartphone são convertidos, sejam eles corpos no Tinder ou ideias no Twitter. A chave está em que estas redes sociais alteram a condição de todo o exibido nelas, exatamente igual que as montras do El Corte Inglés (dentro das quais, porém, ainda nos nos escandalizaria ainda ver pessoas a oferecerem-se).
Sabemos que estas redes são, na verdade, enormes centros comerciais que rentabilizam até os aspetos mais íntimos do nosso ser 24 horas por dia, mas a sua penetração também tem sido absoluta no meio de movimentos que se proclamam anticapitalistas, e entre as pessoas que fazem parte deles.
A vida filtrada pelas grandes multinacionais tecnológicas e os seus dispositivos obrigatórios afeta de maneira drástica a nossa maneira de nos relacionarmos com o mundo. Apenas da perspetiva da cegueira ou da adição pode ser dito hoje que os produtos estrela do capitalismo neoliberal são simplesmente ferramentas que podem ser usadas para o bem. São infraestruturas: a plataforma sobre a qual se está a construir um novo tipo de sociedade (já não líquida, mas gasosa), um novo tipo de ser humano (autopercebido como uma mercadoria e ansioso por ser consumido) e um novo tipo de sujeito (cujos pensamentos, desejos e comportamentos são transparentes ao poder, e facilmente induzidos por ele). Face a esta realidade, os movimentos de emancipação deviam insistir na construção de infraestruturas para um mundo, país e humanidade dignos. A recuperação e defesa dos encontros físicos, da comunicação atrasada, da desconexão da rede, da lentidão, do esforço e do silêncio são hoje –como já foi dito– objetivamente revolucionárias , e exigem ser incorporadas com coragem na agenda daqueles de nós que lutam para que a vida não seja degradada a um espetáculo, e o mundo não se transforme num centro comercial.
[Este artigo foi publicado originariamente no Novas da Galiza]