Nós, o mal e a cultura penal do inimigo

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Estando preso no cárcere de Teixeiro, conheci um homem amável, inteligente e valente. Mantinha uma luta constante contra a prisão, à que denunciara tanto pelas condições laborais dos presos quanto pelas malheiras que todo o mundo sabia que se davam no módulo de isolamento. No verão de 2023, durante um curso da UNED sobre Arte e Direitos Humanos, aquele preso levantou a voz na presença de toda a direção do centro e dum alto cargo da Secretaria Geral de Instituições Penitenciárias, para denunciar que, detrás das palavras bonitas que ali se estavam a pronunciar, a realidade do cárcere era de censura e dificuldades constantes para os internos poderem desenvolver-se artística e intelectualmente. Isso foi uma manhã. À tarde, vários carcereiros foram ao seu módulo, despiram-no, algemaram-no a um radiador, e espancaram-no brutalmente mentres o ameaçavam de morte. Depois, encerraram-no durante um par de dias em isolamento, antes de enviá-lo para o módulo no que eu me encontrava.

A minha primeira reação foi de carinho e solidariedade cara aquele preso que caminhava pelo pátio com enormes dificuldades a causa dos múltiplos hematomas que lhe provocaram em todo o corpo. Mas no módulo logo se soube -provavelmente, os próprios carcereiros fizeram correr a notícia- que estava na cadeia por abusar sexualmente de crianças. E, desde esse momento, uma lei não escrita do pátio impediu-nos a todos solidarizar-nos com ele, e converteu a sua estância no módulo no inferno que o diretor do cárcere esperava quando o enviou para lá. Eu nunca participei das agressões e dos insultos diários que aquele homem recebeu durante os seis meses que convivi com ele, mas sim fui cúmplice do vazio e a insolidariedade que os agravavam. E sinto vergonha por isso.

Acho que todos os que temos estado no cárcere compartimos a experiência de surpresa que provoca conhecer diretamente pessoas que têm cometido crimes terríveis, e que, porém, não se parecem aos monstros que esperávamos. Resulta que pode haver assassinos simpáticos, agressores amáveis, ladroes generosos e até pederastas sensíveis. É possível encontrar, mesmo, carcereiros bondosos. Resulta, em definitivo, que o mal não constitui a essência dessas pessoas, mas apenas um dos seus acidentes, e que esta realidade contrasta com a imagem que os programas sensacionalistas e os discursos punitivistas pretendem dar dos criminosos, para assim desumanizá-los. No fundo da questão lateja um debate fundamental sobre a origem e a presença do Mal, do que derivam diferentes doutrinas penais sobre como geri-lo: se o ser humano é mais que o mal que comete, o sistema penal deve orientar-se a potenciar todo o que de bom há e pode haver nele; mas se o criminoso é redutível ao seu crime, não faz muito sentido qualquer política que não esteja encaminhada a apartá-lo ou eliminá-lo para sempre.

Durante a maior parte da história do pensamento ocidental, este tipo de reflexões foram formuladas com a linguagem da religiom. E esta discrepância de fundo sobre a relação da humanidade com o Mal atravessou o cisma fundacional da cultura moderna: o que enfrentou católicos e protestantes a partir do s.XVI. A doutrina católica defendia que a inclinação ao Mal é um elemento constitutivo da natureza humana, que em maior ou menor medida ninguém está livre de pecado, mas que este pode ser expiado mediante o sacramento do perdão, que nos expõe à luz transformadora do Bem divino. A salvação -que é como na linguagem teológica se chama a uma vida orientada cara o Bem- depende da capacidade de cada pessoa para olhar mais a Deus do que ao Diabo, e a sociedade pode ajudar nisto. Porém, o protestantismo de influência calvinista acreditava na predestinação, isto é, em que os seres humanos nasciam já salvados ou condenados. As suas ações não os faziam merecedores do Céu ou do Inferno, senão que eram expressão duma alma essencialmente boa ou má, já destinada por Deus, desde o momento mesmo da criação, para a virtude ou para o pecado. Desta perspetiva, o delito não é um erro ou um tropeço, mas a demonstração duma mancha de nascimento, dum mal intrínseco e eterno que não pode ser revertido.

A conceição católica alimentou as teorias do Direito que acreditam na reinserção ou nas medidas de graça, enquanto a protestante está na base dos sistemas penais que defendem a cadeia perpétua ou a pena de morte. O calvinismo teve uma enorme influência não só religiosa, mas também cultural e política, na Europa protestante dos alvores da modernidade. A perseguição católica e o messianismo colonial fez que a América do Norte fosse o destino de milhares de puritanos, huguenotes, “pais peregrinos” e demais denominações calvinistas, que exerceriam uma influência notável na formação ética e cultural dos Estados Unidos. O punitivismo que impregna hoje a cultura hegemónica tem provavelmente uma das suas origens nessa matriz puritana que atravessa o pensamento anglo-saxônico, obsessionada com buscar, assinalar e castigar Satanás (que etimologicamente significa “o inimigo”).

Mas essa forma de sentir e de pensar impregna já também os movimentos sociais progressistas do nosso país. Os mesmos movimentos sociais que denunciam o “Direito penal do inimigo” que, ao abeiro da política antiterrorista estadounidense, foram implementando os Estados ocidentais no que vai de século, participam da “cultura penal do inimigo” que nutre aquele, e que considera explícita ou implicitamente que os filhos de Satanás devem ser apartados e castigados de por vida. Para a sensibilidade de esquerdas, Satanás pode ter forma de machista, de corruto ou de explorador, mas aquelas pessoas que levam a sua marca são essencialmente malignas, e não merecem outra atenção que o castigo. Cada vez mais amiúde, no seio dos movimentos sociais escutam-se negações radicais dos princípios do Direito humanista, como são a presunção de inocência ou aquela máxima ilustrada que afirmava ser preferível absolver um culpado do que condenar um inocente. E, sobretudo, normaliza-se o ódio como motor da Justiça, promovendo-se castigos perpétuos e linchamentos sociais, e olhando-se com suspeita qualquer relação com o autor do delito que não reduza a sua condição humana à de simples delinquente.

Ainda falando no idioma da religião, a tradição humanista expressou o mandado de “odiar o pecado, mas amar o pecador” como um guia que nos permita diferenciar o Mal -e o rechaço profundo que nos deve provocar- daquelas pessoas que circunstancialmente são escravas dele. Se não acreditarmos na existência de seres humanos essencialmente malignos, trazidos ao mundo com almas irremediavelmente condenadas, a melhor via para defender e potenciar o Bem é, precisamente, sementá-lo e cuidá-lo em aqueles que mais longe estão dele. Respeitar o inimigo é um dos princípios mais belos nos que assenta a nossa cultura, e graças a ele fomos capazes de dar-nos normas humanitárias para fazer justiça e mesmo combater na guerra. A nossa cultura política, que reivindica com veemência o cumprimento desse dever quando o Poder o exercem outros, tem de esforçar-se por não deixar-se arrastar pelo ódio quando tem a responsabilidade de julgar e condenar comportamentos terríveis, e as pessoas que os cometem. Os movimentos sociais -como pequenas sociedades que são- têm um repto imenso na hora de reagir ante o crime e a dor que este provoca duma forma distinta a como o faz a cultura punitivista, obsessionada em assinalar perigos, descobrir monstros, e construir muros que nos separem deles, e a eles de nós. Não somos melhores quanto mais ódio expressamos cara o criminoso, mas quanto mais capazes somos de sementar e regar o Bem. Porque acreditamos em que este pode florescer até no mesmíssimo deserto.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]

Máis de Miguel Garcia