A questão da privacidade e da proteção frente ao capitalismo de dados é pessoal, por suposto, mas também política. Os usuários das grandes plataformas e redes comerciais acostumamos dizer que não nos importamos com que os nossos dados sejam registados e comercializados por Google ou por Meta, mas ignoramos ou esquecemos as repercussões que alimentar estas plataformas têm para o conjunto da população. Os dados que recompilam estas empresas são de uma quantidade e uma qualidade nunca antes sonhada por sociólogo, publicista ou tirano algum, e não se utilizam apenas para nos dirigir marketing hiper-segmentado, mas também para analisar como é a sociedade no seu conjunto, e assim poder controlá-la e manipulá-la melhor.
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Por conhecido que seja, paga a pena recordar o caso da Cambridge Analytica. Em 2014, esta empresa criou um jogo chamado “Esta é a tua vida digital”, na que te logavas com a tua conta de Facebook. A aplicação fazia testes nos que pedia aos usuários que respondessem perguntas sobre as suas preferências, interesses e traços de personalidade. 270,000 fizeram-no. Ao logar-se com a conta do Facebook, a aplicação ganhava acesso ao perfil completo das usuárias e usuários nesta rede social… e também aos das suas amizades. Os testes de personalidade que esta gente ia fazendo nesse aparente entretenimento inocente, iam associando-se a cousas tais como o tipo de leituras que despertavam o seu interesse, os seus likes e dislikes, os posts e comentários que faziam, a sua localização, as suas imagens, a sua agenda de contatos ou as suas conversas privadas através do Messenger. A Cambridge Analytica elaborou assim perfis que poderiam dizer -que sei eu- que mecânicos de 40 anos solteiros com duas ex-parelhas e só um amigo íntimo que moravam na periferia de cidades do Sul dos USA e cujo filme favorito era Batman, eram numa alta percentagem narcisistas com forte sensibilidade à insegurança e propensos à ira. E estendendo as ligações entre os perfis psicossociais e a atividade na internet destas pessoas, à atividade na rede de todas as suas amizades, a empresa conseguiu elaborar um perfil completo e profundo dos gostos, preferências, estado de saúde, temores, esperanças… de 87 milhões de pessoas! Todas elas usuárias de Facebook que não entendiam o interesse que a sua vida poderia ter para nenhuma empresa. O caso é que estes perfis funcionavam: para vender os seus serviços, a Cambridge Analytica pedia ao cliente que indicasse ao chou um nome numa imensa base de dados. O programa virtualizava as respostas que esta pessoa daria a um inquérito extenso sobre temas muito variados. Diante do cliente, os comerciais da CA telefonavam à pessoa fazendo-se passar por entrevistadores, e este podia comprovar como a vítima dava uma trás outra as respostas que o programa predissera.
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Isto aconteceu antes do surgimento da chamada Inteligência Artificial, e já daquela as empresas dedicadas à análise de dados eram capazes de alimentar com estes perfis virtualizações interativas nas que provar o efeito que uma determinada campanha de marketing teria sobre uma determinada comunidade. Analisavam qual era a reação dos professores de direitas ante a notícia duma violação grupal, ou das mulheres pós-menopáusicas ante o último dado sobre desemprego juvenil. E com base nisso, eram capazes de desenhar campanhas extraordinariamente eficazes para produzir o comportamento desejado pelo cliente. Sabe-se que a Cambridge Analytica vendeu os seus serviços a Donald Trump nos USA e ao partido favorável ao Brexit no Reino Unido, com excelentes resultados. Talvez foi a pioneira, mas não a única: em 2018, a organização Tactical Tech tinha identificadas mais de 300 empresas a vender a interesses de todo o mundo o seu poder de influência baseado nos dados oferecidos pelas redes sociais. Como curiosidade e advertência para nós -galegos e galegas- uma destas empresas é a espanhola Llorente & Cuenca, que na sua web oferece campanhas especializadas em criar confiança nas indústrias extrativas.
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O capitalismo de dados dá aos poderosos um poder inaudito. Se a democracia é já puro marketing, o internet dos dados outorga aos seus amos uma capacidade de manipulação do mercado eleitoral sem precedentes. A personalização extrema dos conteúdos impede, ademais, que o diálogo e o debate público sejam ferramentas com as que as vítimas destas campanhas podamos contrastar e corrigir as nossas opiniões sobre a realidade. O facto é que, ao percebermos o mundo através do que o algoritmo destas redes nos oferece, cada quem percebe uma realidade distinta, e não compreende como a vizinha pode tirar conclusões diferentes: o debate público tem tão pouco sentido como o teria uma tertúlia de bar na que cada quem lesse uma versão diferente do diário.
Facebook, Youtube, Instagram, Whatsapp, TikTok, Google, X, BlueSky… são fundamentalmente isso: as iscas que as principais companhias do mundo nos oferecem para monitorizar até o mais íntimo das nossas vidas, e alimentar com isso a grande maquinária da sociologia de dados. Os seus produtos são tão gratuitos e saborosos como a comida que recebem os ratos de laboratório. O que estas empresas vendem não som apps, mas dados e perfis graças aos quais estão a desenhar-se ferramentas incríveis para que aos poderosos lhes seja mais doado que nunca impor a sua vontade.
[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]