“O inferno são os outros?”

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Fiz a minha coluna da semana passada sobre a palavra e o conceito de ubuntu; quedei feliz com o que escrevi. Mas, para a minha surpresa, o único comentário que suscitou foi burlão, e pode que racista: “Agora imos aprender tamém o significado de ‘jumla’ em swahili, e, se cadra, ainda pódenos servir para algo”. Bem sei do relativo dos comentários na rede aos artigos, e afetam-me pouco. Mas neste caso –salvo que entendesse mal ao autor, e nesse caso peço desculpas– deu-me um pouco de pena, porque o conceito é muito rico. Dizia ali que ubuntu vinha a significar que uma pessoa é pessoa a través doutras pessoas; os outros não são uma ameaça para mim, os meus inimigos, mas, pelo contrário, são os que me ajudam a ser eu.

Criticava a infeliz expressão norte-americana do self made man, mas também poderia tê-lo feito com a que encabeça a coluna de hoje, da autoria de um dos grandes filósofos do século XX: Jean Paul Sartre. “O inferno são os outros”, pois põem em perigo a minha identidade e a minha liberdade. A frase está numa das suas obras de teatro mais conhecidas: A porta fechada (Huis Clos). Nela estão três pessoas fechadas numa câmara do inferno; cada uma é, com a sua olhada, o verdugo do outro. O inferno são os outros porque “nos desestabilizam –escreve Sartre– e questionam a nossa visão quotidiana e o nosso projeto do mundo”. Bem é certo que, após descobrirem os protagonistas que estão mortos, rematam a obra dizendo: “Em realidade, estamos juntos para sempre”.

Em contraposição às conhecidas palavras do filósofo francês, tenho escrito que os outros não são o meu “inferno”, mas os que possibilitam que eu poda ser realmente o que sou; os outros são parte de mim. Pois não somos “indivíduos” –um conceito ocidental burguês–, somos “pessoas”: seres que nascem e são em relação, não isoladamente. Os outros não são algo aparte, mas alguém que faz parte de mim. O inferno não é o outro, mas a incapacidade de amar ao outro; pois eu não sou sem ele, não sou sem amar e ser amado pelo outro, a pesar das diferenças. E para a pessoa religiosa, não sou sem ser amado pelo Outro, Deus.

[Este artigo foi publicado originariamente no Nós Diario]

Máis de Victorino Pérez Prieto