Menina Memória

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45e48-henriette-browne-young-girl-writing-at-her-desk-with-birdsMinha gente, vou-vos contar um conto que me contaram há muito tempo e começa assim: Era uma vez um país onde as pessoas esqueciam a cada noite o que tinha acontecido durante o dia. Sempre que chegava o entardecer, quando o Sol se ocultava no horizonte, as lembranças escureciam na mente das pessoas confundindo-se com as trevas noturnas. No momento antes de dormir, a gente mal se lembrava do último que tinha feito: Meter-se entre as mantas, desligar a luz, ouvir os murmúrios quedos da noite e depois… nada… até ao dia a seguir em que tudo começava de novo.

@s habitantes daquele país sabiam que tinham um grave problema porque sempre deixavam sem acabar o que começaram no dia anterior. Se faziam qualquer cousa, na manhã seguinte já não se lembravam. Se aprendiam a conduzir, se conseguiam cozinhar um bom jantar, se aprovavam um exame, se ganhavam um emprego, se namoravam, se morriam, no dia a seguir tudo tinha desaparecido e tudo começava de zero sem ninguém se lembrar de nada. Ter filh@s era uma surpresa. De repente uma mulher tinha um filho, assim, um dia. E passadas umas horas já não se lembrava dele. Porque todos os dias, ao chegar a noite, as pessoas daquele país esqueciam o que tinha acontecido durante o dia.

Foi por isso que uma daquelas filhas esquecidas inventou um dia a escritura. Ensaiou as primeiras letras num caderno perdido pela casa e praticou desde a manhã durante várias horas. Praticou e praticou e justo antes de se pôr o Sol a menina conseguiu deixar escrita uma frase: “Chamo-me Memória”. Depois a noite chegou e quase sem lembranças a menina Memória dormiu e esqueceu.

Na manhã seguinte, outra menina achou em cima da sua mesa um papel que dizia: “Ontem eu, Memória, escrevi aqui durante muitas horas a história da minha vida e deixei este testemunho para outras pessoas se lembrarem de mim”. Então a menina, fascinada, quis responder aquela mensagem por escrito. Praticou e praticou e finalmente escreveu: “Eu tenho lido e sabido a história de Memória. Deixo aqui este testemunho para outras pessoas se lembrarem da Memória e de mim”. E como ficara satisfeita com a resposta, foi contar a um amigo o que tinha feito.

O amigo, fascinado, contou para outros, e outros para outros, e em pouco tempo tod@s quiseram escrever algo em resposta à menina Memória. Tinha tanta força a ideia que antes de se pôr o Sol eram milhões os cadernos que as pessoas tinham escrito para responder aquela mensagem. Passaram as horas, a noite chegou e quase sem lembranças a gente daquele país dormiu e esqueceu.

Na manhã seguinte os milhões de páginas escritas dançavam pelas ruas, saíam voando pelas janelas, empapelavam as paredes das casas, inclinavam-se à beira dos rios, penduravam das polas das árvores, impediam as entradas e saídas, provocavam acidentes. As gentes decidiram parar toda atividade e dedicar o dia a recolher aqueles papéis rebeldes que saíam não sabiam de onde. Recolheram e recolheram durante muitas horas ordenando como puderam. E justo antes de se pôr o Sol, as pessoas daquele país conseguiram depositar quase todas as páginas no local que um vizinho tinha oferecido, sem se lembrarem bem de quem tinha sido.

Por fim chegou a noite e tod@s adormeceram. E no novo dia a Biblioteca daquele país abria as suas portas. Mas as pessoas tinham esquecido o que ali havia. Por isso, cada vez que entravam na Biblioteca levavam uma surpresa. Abriam um dos cadernos e achavam, admirad@s, o testemunho dum familiar, o texto duma historiadora, uma receita de cozinha. Alguns cadernos tinham-se juntado a outros e formavam vários tomos, enciclopédias, dicionários, romances, ensaios nacionais, científicos, artísticos. A gente tinha escrito tantos poemas, tantos contos, tantas canções. Havia partituras, debuxos, mapas, planos de cidades, tratados de botânica, de política, de astronomia. As pessoas já não se lembravam de terem alguma vez escrito tudo aquilo, mas aquilo ali estava.

Por isso, minha gente, tende presente, ainda que amanhã não nos lembremos disto que hoje vos conto, que quando entrarmos numa biblioteca haveremos de levar uma grande surpresa, que por nós ali esperam, reunidas, quase todas as respostas que alguma vez o nosso país escreveu para a menina Memória.

 

* Out.-Dez. 2015, conto escrito para a biblioteca do Liceu de Ensino Secundário Número 1 da Estrada.