Por Heitor Rodal Lopes
Contam que, perguntado Confúcio sobre qual seria a sua primeira medida se fosse chamado a administrar um país, o filósofo respondeu: “corrigir a linguagem” [1]. O sábio chinês, consciente do papel fulcral que desempenha a linguagem na comunicação e na compreensão e conformação da realidade na mente humana, apontava diretamente para ela como ferramenta de organização e reforma social primeira e principal. Essa mesma ideia, em palavras do poeta e linguista catalão Gabriel Ferrater [2], é a que vem expressada nesta lúcida frase: “Qui domina els mots, domina el món” [‘Quem domina as palavras, domina o mundo’]. Ou, traduzido para a atual língua de comunicação global, “who masters the words, masters the world”. E hoje, quando padecemos a cotio o uso de inúmeros eufemismos para mascarar a realidade, é quando a certeza dessa afirmação se faz mais evidente.
Ainda, na sua obra “Don’t Think of an Elephant: Know Your Values, Frame the Debate” [3] [‘Não pense num Elefante. Conheça os seus valores, enquadre o debate’] sobre a linguagem e o debate político, o linguista cognitivo George Lakoff [4], questiona o quê é que há esconso na palavra. Ou, por melhor dizer, em que enquadramentos morais e de pensamento estão situadas as palavras que usamos antes de iniciar qualquer debate o razoamento. E aponta aí que foi nessa linha de investigação que os conservadores norte-americanos investiram desde a década de setenta do século passado bilhões de dólares em pesquisas e encontros dirigidos a estruturar e a comunicar de maneira coerente e efetiva as suas ideias e a destruir ao mesmo tempo a efetividade comunicativa e ideológica dos adversários. E atingirom o seu objetivo, não só conseguindo definir as questões políticas no seus termos, mas ainda etiquetando os seus opositores a partir da sua linguagem e os seus valores, dado que estes assumiam e interiorizavam essa linguagem e legitimavam inconscientemente dessa maneira os valores associados a ela. Quer dizer, assumir a linguagem do oponente, mesmo para o contradizer, é o primeiro passo e o caminho mais certo para chegar à derrota.
Seria ingénuo pensar no entanto que esses descobrimentos ficarom só na outra beira do atlântico e que não forom sistematicamente aplicados aquém, ou, por melhor dizer, lá onde se lhes deixou o campo livre. Cumpre apenas reparar na diferença de conotações associadas socialmente e de jeito maioritário a termos como “nacionalista” ou “independentista” em dous lugares diferentes, mas não tão afastados, como a Catalunha ou a Galiza.
Por tudo isto, muitos dos que pensamos que a barafunda terminológica e linguística é o primeiro passo para a desorganização mental, concetual e até física duma sociedade, ficamos admirados com a escassa visão do problema que mostrou e continua a mostrar a este respeito o nacionalismo atualmente maioritário na Galiza, e a contínua cedência que fez nesta questão, tanto no que diz respeito à apropriação da linguagem e dos seus significados em geral, quanto à deturpação linguística da língua própria em particular. Não é simplesmente que fosse incapaz de atingir umas quotas de comunicação social significativas, senão que por desleixo, ignorância ou incapacidade acabou cedendo completamente o controlo sobre a conformação do próprio instrumento de comunicação, quer dizer, o galego português próprio da Galiza. A partir daí, qualquer disputa ficava perdida de antemão, por se ver obrigado a jogar em campo alheio e com as regras do contrário [5].
Valha como exemplo paradigmático disto que a dia de hoje o glotónimo e etnónimo próprios, “galego/a”, língua e sujeitos, são definidos e estão atualmente popularizados e dotados de conteúdo semântico por setores alheios à própria galeguidade , tendo chegado a significar simplesmente qualquer cousa tingida dalguma pinga ou caraterística pretensamente “galegas” ou “galeguizantes” (ser nascido nalguma província galhega, “o”, “a”, “-iño”…). E assim é que conseguirom, por uma parte, colocar a linguagem e o seu uso no enquadramento ideológico e político que lhes interessava a eles ecoar e filtrar, por outra e sem que quase ninguém estabelecesse uma fronteira inegociável aí, um alude de castelhanismos e barbarismos que desfiguram a nossa língua, convertendo-a assim num código linguístico inservível e, como tal, absolutamente prescindível. Alcançarom igualmente a promover, espalhar e socializar dessa maneira uma concepção linguística do idioma próprio ridícula e denegrecedora [6], mesmo que haja quem perceba -ou queira perceber- nessa descaraterização e descomposição linguística “elementos positivos” [7].
Por isso, tal como foi feito noutros lugares, a única estratégia que nos resta para reverter esta situação a quem ainda mantenha uma certa consciência e consistência sobre a importância desta questão é uma constante, incansável e pertinaz conduta de correção na nossa praxe linguística, tanto no uso, quanto na forma e o significado, definindo claramente o que se está a dizer, denotando aquilo que se deva denotar -e conotar- (ex: “Audiência nacional espanhola” e não “audiência nacional”; “governo espanhol” e não “governo”, nem “governo central”, etc…) e naturalizando igualmente o chamar as cousas polo seu nome: galego ao que galego, galhego ao que é gallego e crioulo ao que for crioulo, desmontando assim todo o enquadramento ideológico que subjaz por trás do sucedâneo remexido de língua que nos quiserom coar.
E nisso é que devemos teimar, uma e um milhão de vezes, porque não há outro caminho. E porque aos poucos e inadvertidamente essas categorias, se usadas de modo coerente, consciente e consistente por pessoas conscientizadas, vão calando na praxe social e linguística polo miúdo, como o orvalho na nossa terra.
Notas:
[1] “Perguntaram certa vez a Confúcio o que faria em primeiro lugar se tivesse que administrar um país.
– Seria evidentemente corrigir a linguagem – respondeu ele.
Os interlocutores ficaram surpreendidos, e indagaram porquê.
Foi a seguinte a resposta do Mestre:
– Se a linguagem não for correcta, o que se diz não é o que se pretende dizer; se o que se diz não é o que se pretende dizer, o que deve ser feito deixa de ser feito; se o que deve ser feito deixa de ser feito, a moral e as artes decaem; se a moral e as artes decaem, a Justiça desbarata-se; se a Justiça se desbarata, as pessoas ficam entregues ao desamparo e à confusão.
Não pode, portanto, haver arbitrariedade no que se diz. É isso que importa, acima de tudo.”
http://alfobre.blogspot.com.es/2010/03/conselho-de-confucio-para-governar.html
[4] George Lakoff
[6] O Concello do Carballiño solicitaralle á RAG que admita a palabra ‘pulpo’