No puedo sin la vida vivir,
sin el hombre ser hombre
Pablo Neruda
O poeta estadunidense Walt Whitman disse num poema, que não há qualquer cousa que se possa comparar com uma vaca pascendo. Nenhuma obra humana se pode comparar com a beleza da natureza, livre, autêntica e selvagem. Esta afirmação rotunda e radical sempre me maravilhou, como proposta estética, moral e política. A natureza como cânon, como modelo, como horizonte ao qual olharmos, mesmo se na realidade do século XXI a negamos sem cessar. Esta radicalidade tem-me feito refletir muito, nomeadamente a respeito da estética, e concretamente da literatura e da poesia.
A poesia moderna, essencialmente urbana, mora muito longe das forças naturais, do reino animal e vegetal. Os seus versos navegam por águas abstratas, com frequência é uma abstração sem emoção, um pensamento se calhar interessante rodeado de palavras, mas frio e muitas vezes sem musicalidade, salvo as inevitáveis exeções. É a época da poesia sem ritmo, a época da poesia pós-moderna, vocacionalmente provocadora, insubmissa e original, mas aproximando-se perigosamente do caos e do baleiro de conteúdo e emoções. É difícil conceber uma ideia da poesia em que o ritmo e a musicalidade não existem, sacrificados em troca da abstração e da verborreia. Sem ritmo a poesia perde expressividade, e sem conteúdo perde a alma que lhe dá vida.
Há já muitos anos, quando pego num volume de poesia contemporânea, leio uns poucos poemas, e quase sempre gosto de algumas formulações, de algumas ideias, de algumas estéticas e até de algumas éticas, mas não tenho essa ânsia de seguir a ler, de continuar a devorar versos. É por isso que poucas vezes compro livros de poesia moderna ou pós-moderna. E mesmo tenho lutado contra esta atitude minha, achando-a um possível preconceito. Mas cada vez que de novo folheio as estrofes da nossa época, acho que falta o essencial em toda leitura, a paixão pelo que temos diante dos olhos, e que normalmente chamamos beleza. Poder-se-ia dizer que existem diversos tipos ou modelos de beleza, diferentes jeitos de perceber esta, a seguir o proverbial relativismo moderno. E que até mesmo uma antibeleza poética poderia ser contudo bela, uma beleza cronópia, recordando Cortázar, o que seria para a pintura Picasso (eu apaixono-me pela sua rutura). Em todo o caso, as emoções costumam falar mais certo do que a própria razão, e do mesmo jeito que é impossível não emocionar-nos com uma música formosa, com um quadro que nos enternece, ou com qualquer cousa linda que penetra no nosso coração, também é impossível emocionar-se perante o que não é capaz de comover-nos.
“Cada vez que de novo folheio as estrofes da nossa época acho que falta o essencial em toda leitura, a paixão pelo que temos diante dos olhos, e que normalmente chamamos beleza”
Se a beleza fosse apenas pessoal, como pura expressão do indivíduo, genuína criação do ego, então tudo sem exeção seria beleza. A arte seria apenas mera criação humana, se a percebemos como fábrica natural de cousas belas. Sem conhecer pelo miúdo os postulados estéticos da pós-modernidade, acho que esta proposta do omnium pulchrum faz parte da cosmovisão contemporânea. Analisemos agora, embora de jeito breve, a antiestética apenas bosquejada acima. A procura continuada da provocação poderia fazer com que o feio seja necessário, e mesmo imprescindível. Rachar com o o passado estético quer dizer rachar com os modelos estabelecidos de beleza, por exemplo os Sex Pistols em relação com o rock tradicional, ou a música experimental em relação com a música clássica. No entanto, e não podemos cair no erro de considerar isto um desprezo cara o grande público, ele segue a escutar maioritariamente Mozart, Bach ou Elvis Presley. Cá a pergunta importante seria: porque a gente segue a escutar os denominados clássicos?
Na literatura, infelizmente, está a acontecer o contrário. O que está a acontecer no nosso século é ainda pior do que o abandono maciço da leitura: o abandono maciço dos clássicos. Já não se leem os clássicos, e se esta tendência continuar, após umas décadas, ninguém conhecerá Camões, Homero ou Cervantes. E não estamos a falar da excelsa literatura criada por eles, ninguém saberá qual era a paixão que tinham esses homens desconhecidos. Júlio Verne retratou muito bem este drama na sua interessante obra Paris au Xxème siècle, em que conta o fracasso de um poeta que gosta de escrever versos latinos. Verne lá diz-nos que nessa época todo o mundo sabe ler, mas ninguém lê, afirmação paradoxal, mas vai muito além disso quando descreve o desprezo da modernidade tecnológica e financeira para os clássicos, latinos e gregos, mas também franceses, por exemplo Vitor Hugo. Hoje no nosso século XXI está a acontecer o mesmo, o grande público consome em geral os best sellers e a literatura contemporânea. Obviamente toda esta literatura tem às vezes qualidade e interesse, mas em todo o caso fagocita e soterra no sepulcro a excelente literatura anterior. Segundo as crueis leis do mercado capitalista, baseadas na oferta e na demanda, poderia acontecer no futuro que a falta de demanda de clássicos provocasse a sua extinção.
“Hoje no nosso século XXI está a acontecer o mesmo, o grande público consome em geral os best sellers e a literatura contemporânea, que em todo o caso fagocita e soterra no sepulcro a excelente literatura anterior”
A continuar com a imagem de Whitman, e com as vacas pascendo – a minha memória está cheia desde a infância de vacas a pascer-, a poesia em minha opinião deve ser tocada, sentida e cheirada. Deve ser matéria espiritual que emociona a alma, e deve viajar pelos carreiros da natureza, humana e não humana, pelo universo inteiro sempre a partir da realidade natural. Como matéria espiritual deve viajar à procura da verdade, da ética, da liberdade e da beleza, e deve ser sempre revolucionária, semente de um novo mundo, implacável com todas as ditaduras da realidade. A força intrínseca da poesia, a diferença da música instrumental, é que a sua ferramenta de trabalho é a palavra despida e a sua musicalidade inerente, portanto o contacto direto com o real. O potencial revolucionário, reivindicativo e libertador da poesia é obvio, como máxima expressão criativa da linguagem. É sem dúvida uma arma poderosa para libertar-nos das cadeias políticas e morais que nos oprimem: o capitalismo, o materialismo e o Estado. Não pode ser nunca a inútil procura de uma Arcádia impossível, senão os lábios firmes e valentes que recitam a verdade, como um hábil arqueiro quando tensa a corda sem medo para o seu alvo.
Uma lírica não comprometida não faz qualquer sentido, por muito alta que esteja a sua torre de marfim, porquanto a estética, se é genuína e de qualidade, só pode existir numa esfera ética. A verdadeira estética precisa da ética para viver, como o corpo humano precisa da água, mesmo se o ético não aparece de jeito explícito. A beleza só faz absoluto sentido se à sua volta existe o anceio da liberdade, e l´art pour l´art de Verlaine é uma máxima acertada. Mas fora dessa arte, dessa esfera independente, está de jeito inevitável o planeta da ética como elemento de atração. Toda estética faz portanto referência, implicita ou explicitamente, ao mundo da ética. Bem e beleza atraem-se reciprocamente, como dizia Sócrates. A beleza sempre demanda liberdade, mesmo se não pronuncia o seu nome. O sublime sempre demanda verdade, ainda que cale o seu desejo. Lembremos o sugerente título do poema do Gabriel Celaya: La poesía es un arma cargada de futuro. No fim desse emocionante poema, condensa o que para ele devem ser a poesia e as palavras:
Son lo más necesario: lo que no
tiene nombre.
Son gritos en el cielo, y en la tierra
son actos
Assim o experimentei com os primeiros poemas que lembro, lidos num livro escolar de Lengua Española, durante a etapa do ensino primário. Aqueles poemas de amor de Garcilaso de la Vega eram realmente sublimes, e demandavam um mundo formoso à sua volta, uma sombra de uma árvore generosa. Foi nesse momento quando descobri pela primeira vez a poesia, essa energia misteriosa das palavras e da sua música (nem sendo propriamente música), para unirem-se, abraçarem-se e criarem mundos maravilhosos de sensações maravilhosas. Não comprendia o sentido de todos os versos, o sentido e o significado de todas as palavras, mas tanto tinha, compreendia a beleza essencial, a fusão única da sua forma e do seu conteúdo. Alguns anos mais tarde, ainda na infância, comecei a escrever poesia. Só muito depois soube o difícil que é domar as palavras, o difícil que é procurá-las e o difícil que é que elas venham, apenas para fazer um bom verso. Cumpre aprender a arte de amá-las, de pesá-las, de acarinhá-las, de saboreá-las longamente no padal, de senti-las em cada sílaba, em cada consoante e em cada vogal. Os partos são sempre dolorosos. Há dias que elas vêm todas juntas, rapidamente, de mãos dadas em cada linha. Há outros que são como as gotas de uma pingueira, formam-se e caem lentamente no papel.
Acima falamos da ética na estética. Eis um exemplo prodigioso desta fusão explícita, do aroma do bem e da verdade na poesia, as estrofes iniciais de uma formosíssima composição de Tíbulo:
Divitias alius fulvo sibi congerat auro, Riquezas outro para si amontoe de ouro dourado,
Et teneat culti iugera multa soli, e possua muitas jugadas de campo cultivado,
Quem labor adsiduus vicino terreat hoste, quem, o inimigo próximo, o ardor contínuo arrepie,
Martia cui somnos classica pulsa fugent: a quem o sono tirem as estridentes trombetas de guerra
Me mea paupertas vita traducat inerti, A mim a minha pobreza me conduza ao longo duma vida aprazível,
Dum meus adsiduo luceat igne focus. enquanto o meu lar quecer co lume constante.
Ipse seram teneras maturo tempore vites Eu mesmo, labrego, plantarei no seu tempo as maduras vides,
Rusticus et facili grandia poma manu e com mão hábil as grandes árvores frutíferas
Tíbulo. Carmina. Livro I, 1-8
Mas apesar destas estrofes maravilhosas de Tíbulo, onde confluem a estética e a ética no oco de ouro de cada cesura, na profunda harmonia do rio das aliterações em cada verso; apesar desse ritmo perfeito que acarícia cada sílaba e cada vocábulo dos hemistíquios, sem ter que recorrer à rima moderna, o trecho poético mais sublime que conheço até hoje são uns versos de Camões, musicados pelo Zeca Afonso. Eles pertencem ao poema Endechas a Bárbara Escrava. Cada um é uma joia e uma obra-prima em si mesmo, mas os meus preferidos são os seguintes:
Nem no campo flores,
nem no céu estrelas,
me parecem belas
como os meus amores
A ética fica oculta desta volta, mas essas grinaldas singelas penetram diretamente na alma, apesar da carga da rima, voam livres como pombas brancas. A rima de facto desaparece magicamente, torna-se mais uma sílaba do poema. Qual será a ética que estes sons sublimes nos assinalam? Esse corpo preto e desejado de uma escrava, esse espírito ainda livre, não deveriam poder ser amados num mundo também livre, sem cadeias? E lembrando só a estrofe, sem o seu contexto concreto, por acaso a beleza da mulher amada e da natureza não reclamam também a beleza moral do mundo? Flores, estrelas, meus amores, liberdade, verdade, justiça.