A reconquista do legado

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No dia 24 de março apresentei em Chantada os meus dous livros de poesia, O mundo nasce em Chantada, 2015 e Poemas do Fim da Terra, 2017. Obrigado ao Xavier Viana e à Cris Ouro por me darem a opoturnidade de fazê-lo no seu local (Espazo C), no formoso Cantom chantadino, o centro histórico da vila.

O evento foi um lançamento-colóquio, em que a gente falou após o recitado dos poemas. Destarte, pudemos partilhar qualquer cousa através da palavra, sendo este facto ainda mais importante do que os próprios livros, porquanto rachamos o silêncio da cultura do espetáculo, a incomunicação e  o individualismo obrigatórios. Eis a essência da democracia, simplesmente partilhar. Concordar não é preciso. Mas alguém disse-nos que a democracia é votar numa urna cada quatro anos.

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Antes de mais, fiz uma pequena introdução, a falar das ideias-chave mais importantes dos dous poemários e de uma nova ideia de poesia, uma poesia da renascença, da ideia que a poesia pode ser uma ferramenta para renascer como povo e como indivíduos, sempre num lugar geográfico determinado, neste caso a Galiza. Uma poesia concreta que tenta recuperar a sua própria alma, o ritmo e a musicalidade, a emoção e o conteúdo, perdidos na poesia moderna, abstracta e sem harmonia. E cumpria explicar também por que é que estão escritos em português, quer dizer, expliquei brevemente o que é o reintegracionismo.

Eis as ideias de que falei, antes de recitar qualquer poema, a partir de algumas palavras de um trecho do prólogo do livro Poemas do Fim da Terra:

Cumpre reafirmarmos com orgulho a nossa identidade e a nossa história, mudando a nossa autoperceção e a nossa autoestima, cientes da grande beleza do nosso idioma, negada polo colonialismo, incluindo nela o carácter universal da nossa cultura mediante o reintegracionismo.

Além de falar dos aspectos políticos do colonialismo, sempre para além de considerações ideológicas, o colonialismo percebido simplesmente como pura realidade histórica e sociológica, portanto como qualquer cousa inegável, fiz muito fincapé no seu aspecto estético.

O sinónimo para nós da palavra beleza, a palavra saudade, não mencionada no Prólogo com esse valor semântico, tem um grande significado. Aproveitei este esquecimento para falar das causas estéticas da substituição linguística que padecemos, ao perdermos a nossa palavra nacional, o nosso sentimento patriótico, nomeadamente a partir do século XX.  Estas causas estão frequentemente esquecidas, mas a língua colonizadora vai ser sempre a língua bela, desterrando para o averno do feio a língua dominada.

A saudade, dentre muitas outras cousas, é a musicalidade da língua, a sua afetividade e ternura, também a sua firmeza. A língua neutra, sem saudade nem musicalidade, o castelhano, falseou a realidade e tornou-se a língua formosa, desprezando aquilo que outrora admirava. Com efeito, a História está cheia de paradoxos, e no século XIX, quando nasce a Espanha liberal e centralista na qual ainda moramos, o galego é desprezado como língua regional e rude. No século XIII era uma língua admirada e cultivada na corte de Castela.

Rematei a introdução falando do legado e da responsabilidade que temos à frente, de uma parte o tesouro do idioma, e de uma outra a civilização labrega e marinheira, as nossas origens, de um ponto de vista duplo: como fonte de cultura, a riquíssima cultura oral e popular, e os seus valores ético-políticos: liberdade, igualdade, fraternidade e amor pola Natureza. A afirmação fulcral e não ideológica, a verdade simples, é que o galego é a língua própria e natural de todos os Galegos, e não o castelhano ou espanhol, apenas língua do Estado.

Perante a alienante situação atual, a espanholização das novas gerações, e o risco de desaparição da língua e da cultura galega em longo prazo, as consequências deste legado comum são duas: antes de mais, o cultivo e o compromisso de todos, sem exeção (da língua e com a língua) e a transmissão linguística aos nenos, o amor polo idioma desde criança. O espanhol já o temos como realidade alicerçada, é o galego que cumpre preservar, cultivar e prestigiar. A verdade essencial da responsabilidade comum tem de acrescentar a autoestima dos galego-falantes, amiúde baixa, e poderia dar cabo do autodesprezo e dos preconceitos cara o nosso próprio idioma, incluindo o fim do monolinguismo em espanhol, o facto de virarmos costas ao galego.

Neste sentido, o reintegracionismo significa a recuperação da dignidade para o galego, o emprego da nossa ortografia patrimonial e o fim da vassalagem face ao espanhol em todos os aspetos linguísticos, desvendando a sua verdadeira dimensão, uma dimensão universal. Eis a grande avantagem do reintegracionismo, a partir da verdade e da dignidade, torna uma fala regional em processo de desaparição, um idioma universal, sendo o melhor jeito de preservar, cultivar e prestigiar a nossa língua.

Finalmente, falei da génese dos dous livros de poesia e das suas características mais importantes. O mundo nasce em Chantada, publicado sob uma deficiente edição de autor em agosto de 2015 e com algumas licenças ortográficas, nasceu na morrinha da terra natal, no facto de morar longe dela. O seu título é uma declaração de amor, o amor cara a terra natal, percebida como cosmogénese e como cosmovisão, como universo local e único em que cada um nasceu e se criou: O mundo nasce em Chantada, no Ribeiro, na Terra Chã…Em cada aldeia, vila ou bairro de cidade, tendo como eixo a comarca galega, entidade ainda viva sob a sua heterogeneidade e riqueza.

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Este poemário nasceu como crónica da memória, numa casa de aldeia do século XIX em Pousada, freguesia de Chantada, o Paço dos Tangueiros, antiga fábrica de coiro, na companhia do magistério dos avós maternos, quer dizer, na companhia do magistério da nossa cultura labrega. As experiências da infância e da adolescência, forjadas nesse magistério, engendraram a primeira parte do livro, Chantada (O mundo nasce). A partir desse germolo chantadino, nasceram as outras partes do livro: Cantigas da Galiza, Carreiros e Janelas. Para situar o livro no seu contexto histórico, falei do desafio do peak-oil no prólogo e do abalo da civilização industrial nas vindouras décadas.

Poemas do Fim da Terra, publicado nas Edições da Terra em novembro de 2017 numa edição profissional e de qualidade, representa um longo trabalho de dous anos, e em opinião do seu autor é uma obra mais polida literariamente que o poemário anterior. Nasceu na primavera de 2015, a primeira vez que visitei a vila de Fisterra. Nesse lugar mágico nasceu a inspiração do livro e o seu primeiro poema, Praia Langosteira. Lá descobri a linguagem do Oceano, o facto real e não simplesmente retórico de a Galiza inteira ser o Fim da Terra, o finis terrae dos romanos, e nessas vagas comecei a alviscar uma nova consciência galega, um novo galeguismo. Se calhar ainda era possível mudar a situação atual do País, ou no mínimo termos a força de lutar com dignidade até ao fim.

Paisagens, Numa pátria certa chamada Chantada, Voltando a Compostela, Cantigas dos Carreiros Livres, Dias e Noites no Fim da Terra. As cinco partes do livro foram nascer naquela formosa praia, numa noite de insónia. No extenso prólogo fiz uma pequena biografia dos meus avós maternos, a quem vai dedicado antes de mais o livro. São os velhos valores da nossa cultura labrega e marinheira, mencionados acima, que podem ainda criar os alicerces de uma nova democracia galega, a transcender o mundo rural, a terra e o mar, válida também portanto para vilas e cidades, por causa da sua universalidade. Mas para criarmos esses alicerces cumpre reconquistar o legado do que somos, quer dizer, cumpre reconquistar e aperfeiçoar o legado dos nossos avós.

 

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     Reproduzo a seguir os dez poemas recitados em Chantada o 24 de março, em ordem cronológica:

 

A SABEDORIA NUM BANCO

Ao meu

querido bisavô,

                                a pessoa mais sábia

                                              que tenho conhecido

 

Os dous punhos pechados estavam juntos, formando uma sólida e única torre por cima do mesado. O queixo pousado nos punhos, os olhos olhando pràs mãos, a boina negra ao lado. O silêncio pendurado do corpo, a calma arredor, pomba branca no telhado. Velaí estava o labrego sábio. O Jaquim de Pousada, nascido no outro século, era a sabedoria. Não fazia falta que falasse, ao chegar onda el´, qualquer um já se tornava sábio. Pousai os livros, estudantes. Olhai o livro mais importante, o livro da vida. Uma após uma tereis de ir escrevendo e colando vós próprios as folhas da vida no vosso livro. Olhai o Jaquim de Pousada, não há folhas em branco, o livro está cheio e completo. Pousai os livros, estudantes. Olhai o Jaquim do Prúsio, pensáveis que a sabedoria era cousa morta, cousa enterrada nas páginas. Agora olhai-a, olhai-a viva e sentada num velho banco de madeira.

 

O IDIOMA DAS VACAS

O taravelo virava, as portas das cortes abriam-se, e as duas vacas saíam. A corda ficava presa na testa. Atrás e coa vara na mão, eu afalava. E a vara caía docemente no lombo da vaca ceiva. Pola encosta do carreiro, subíamos lentamente. A cinza do céu anuvado mexia-se co vento. As vacas entravam no prado, e a tomada do pastor entrava na terra. Logo se torziam aquelas línguas mágicas no chão, tangendo as cordas das ervas desaparecidas, ao ritmo da doce dança dos rabos. Esta erva é de todos, dizem os rabos e as línguas. E voltávamos para a casa, olhando às vezes o sábio falar das vacas, o seu belo e pacífico idioma: homens e mulheres, esta erva é de todos.

 

 

 

 

A GALIZA NO PEITO

 

Levo a Galiza no peito,

o carvalho milenário,

a areia quente do Brasil,

a rosa de Portugal.

 

Levo a Galiza no peito,

o carvalho milenário,

a máscara mágica de Angola,

o Índico azul de Moçambique.

 

Levo a Galiza no peito,

o carvalho milenário,

o branco arroz de Macau,

as espécies perfumadas de Goa.

 

Levo a Galiza no peito,

o carvalho milenário,

as belas ilhas aligato,

a cálida selva de Timor.

 

Levo a Galiza no peito,

o Atlântico africano,

as estrelas de Cabo Verde,

a lua da Guiné-Bissau.

 

Levo a Galiza no peito,

o carvalho milenário

de longas raízes,

perdidas no infinito

do mar e da terra.

 

 

SOMENTE UMA PALAVRA

As palavras estão vazias. Quem as matou? As palavras mortas caem como pombas mudas, feridas de morte baixam do céu e acabam rotas na terra. Quem as matou? Já não dizem nada. Os súbditos mataram-nas. Só os homens livres poderão reviver as palavras. A palavra só pode morar na terra da liberdade. Quem poderá inventar uma arma mais poderosa? Se a palavra aparece, todas as armas caem com estrondo no chão. Palavra sempre vencedora, semente de homens livres, morta pode o súbdito reinar. Somente uma palavra de novo viva caminha triunfante. Ninguém poderá deitar o seu estandarte. Liberta cada súbdito, liberta cada língua das suas cadeias. Palavra após palavra os súbditos falam por fim. Palavra após palavra os homens livres falam por fim.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

MÃE DA LIBERDADE

Ao  Afonso

                                                                                                                        de Cartelos

Aldeia amada,

vem salvar-nos do progresso.

Vem salvar-nos do eterno assassino.

Vem salvar-nos do crime perpétuo.

 

Na tua fonte pura

quero eu lavar a minha cara.

 

Na luz das tuas estrelas

quero eu construir minha morada.

 

Aqui quero viver,

no berço da liberdade.

 

Se tu morreres,

o mundo seria um escravo

com cadeias para sempre nos seus braços.

 

Só em ti há verdadeira riqueza,

próspera terra de homens livres,

pátria da paz entre os povos,

mãe da palavra liberdade.

 

 

Aldeia escrava,

torna-te livre,

torna o mundo livre!.

 

Poemas do livro O Mundo nasce em Chantada

Manuel Meixide Fernandes . Editorial Artgerust 2015

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

    Atrás dela

 

Quiçá na flor do tojo

foi-se pousar a borboleta.

E o branco e o amarelo

deram-se um abraço eterno.

O abraço eterno do verão.

 

Quiçá um dia o carvalho

alouminhou  cos seus braços

as velhas polas da cerdeira,

um dia de cinza gris

caindo docemente do céu.

 

Quiçá foi uma velha lareira,

a  pedra queimada co fume,

naquela casa de Nandulfe,

naquela pequena corte,

a corte das velhas matanças.

 

Quiçá foi o torrisco no lume,

o amor eterno da avó

pingando passeninhamente nas lapas.

 

Quiçá foi a janela do corredor,

o canto agónico do velho carro de bois,

achegando-se lentamente até ao palhar,

mostrando a imensa carrada d´ouro seco.

 

 

Quiçá foram as asas da andorinha,

a neve e a noite juntas,

beijando-se abertas e livres

diante dos olhos dum neno.

 

Quiçá foi a aira de Pousada,

o amplo paraíso da sombra

na cúpula azul do céu.

 

Quiçá na flor do tojo

foi-se pousar a borboleta,

e o branco e o amarelo

deram-se um abraço eterno.

O abraço eterno do verão.

 

Quiçá…

Só sei que a Galiza

anda atrás de mim,

e eu atrás dela.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Longe da terra

                                                                                                                        À minha terra,

                                                                                                       a comarca de Chantada

Traço-te na alma,

debuxando a água azul que te banha,

molhando-te num silêncio profundo.

 

Traço a altura da montanha

desde as romarias da infância,

onde o ar mágico fala.

 

Traço-te virgem, calada e majestosa,

reinando silenciosa em cada carvalheira.

 

Traço aquela barca afundida

na entranha do Minho,

sombra perdida na sombra do rio,

sem muras e sem ribeira.

 

Traço-te num paraíso verde,

rodeado de vacas e de regatos,

onde os carreiros docemente caminham,

onde os valados docemente se pousam.

 

Traço-te nas silvas,

livre e soberana, comendo nas amoras.

 

Traço-te na pedra das igrejas,

na humilde pia dum peto de ânimas.

 

Traço-te grandiosa e fértil,

cantando fecunda polos vales,

grávida de milho,

malhando no trigo,

mãe de castanhas e de nozes.

 

Traço-te na cepa retorta,

pequena fonte sagrada

donde mana o vinho.

 

Traço-te na rua que baixa ao Asma,

por uma escada de pedra

lavrada em milhares de pedras.

 

Traço-te nas rosas de Pousada,

nas nuvens brancas de Belesar.

 

Traço-te nos prados de Viana,

no horizonte de Quintela,

nas encostas de Requeixo,

nos ciprestes do Convento,

nos telhados de Nogueira.

 

Traço-te na alma, Chantada,

debuxando a água azul que te banha,

molhando-te num silêncio profundo.

 

 

 

Banho com anjos

 

Numa ruela escura caminhava, meus pés pisavam as sombras, as pedras perseguiam os meus passos. E o eco do templo abriu-se na noite, as portas pechadas dos santuários abriram-se em silêncio. Então escutei de novo a voz virgem e ténue que manava do rio pétreo, essa corrente do empedrado chegando até às meixelas das fontes, subindo até aos cabelos dos arcos. Numa ruela escura caminhava, e vi de novo a banharem-se os anjos, e banhei-me de novo com eles.

 

 

 

Na lareira

 

Os velhos falavam

ao pé da lareira.

 

Contos de lobos

e de mouras.

 

Falavam na escola,

choravam à volta.

 

Falavam nos barcos,

à beira do faro.

 

Falavam na vila,

no meio das ruas.

 

Falavam galego

as línguas dos velhos.

 

Falavam trisavós

ao pé da lareira.

Lume que prende na lenha,

chama que arde no peito.

 

Não apagarão a nossa voz.

Não, não apagarão a nossa voz.

 

 

 

Desterro

 

Nalgum carreiro perdido,

nalguma pedra perdida,

nalguma erva escondida,

mora a minha pátria.

 

Longe das bocas sem língua,

onde os homens ainda falam.

 

Nalguma casa perdida,

mora a minha pátria.

 

Onde se abre uma porta,

e as palavras correm.

 

Longe das bocas mudas,

do ouro morto do rei Midas.

 

Nalguma casa viva

mora a minha pátria,

para comer sempre

palavras novas de cada dia.

 

Poemas do livro Poemas do Fim da Terra

 Manuel Meixide Fernandes. Ediçoes da Terra 2017

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Máis de Manuel Meixide Fernandes