Abbà ou as sandálias do povo I

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Deus não tem religião

Mohandas Gandhi

INTRODUÇÃO

Nas águas do rio Jordão, diante do povo judeu que estava a ser batizado, o profeta João, alcumado Batista, imergiu a cabeça do seu discípulo Jesus. À gente de conduta reprovável que vinha ter com o profeta do deserto, arrecadadores de impostos e soldados, perguntando-lhe o que tinham de fazer, o eremita respondia a uns que não exigiram nada além do que lhes foi estabelecido, e aos outros que não exercessem violência sobre ninguém, não denunciassem injustamente, e se contentassem com o seu soldo (Lc 3, 12-14). Naquelas águas, o povo de Israel andava à procura da sua purificação, confessando ao mesmo tempo os seus pecados, batizados por aquele asceta que pregava uma mudança de vida a partir da imersão.

Daquelas águas devia surdir uma alma nova, uma nova vontade, uma vida ligada à prática da virtude, reconciliada com a fé num Deus da verdade e da justiça. As multitudes interrogavam ansiosas aquele homem vestido com a pele de um camelo, a alimentar-se de saltões e de mel silvestre: o que devemos fazer? E João Batista respondia: quem tem duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma, e quem tem mantimentos faça o mesmo (Lc 3, 11).

Conta o Evangelho de Lucas, que após ser batizado o filho de Maria, ele rezou e o céu se abriu, e uma pomba desceu sobre ele, o Espírito Santo. Nesse instante uma voz veio do céu, a dizer: tu és o meu filho: eu mesmo te engendrei hoje (Lc 3, 21-22). Estas formosas imagens, também poderiam ser aplicadas a qualquer judeu que se estava a batizar no Jordão naquela altura, ao que parece durante a época do imperador Tibério. A volta ao caminho da virtude graças à imersão na pureza das águas, é o reencontro entre o indivíduo e o seu Deus, a sua obediência às leis que o obrigam a amar o próximo. A pomba é o vínculo perdido entre os dous, o vínculo recuperado.

Na Palestina da altura, filho de Deus era o atributo daqueles que estavam perto de Javé, profetas ou qualquer pessoa virtuosa. Era o alcunha daqueles que tinham verdadeira fé religiosa, que seguiam as ensinanças e os preceitos desde a convição interior, desprezando mesmo os rituais externos, segundo o que o livro do Deuteronómio denomina circuncisão do coração.

Como bom discípulo de João, Jesus começou uma vida de anacoreta no deserto, levando no coração a pomba do reencontro com Deus, como qualquer compatriota seu. Depois de quarenta dias, segundo o que dizem os Evangelhos, ele voltou para iniciar uma vida pública de pregação da virtude e do amor, não isenta de uma crítica duríssima ao establishment hebraico, religioso e político do seu tempo. A prédica do amor e da não violência universais, não impediu que o seu zelo religioso o puxasse a expulsar brutalmente os mercaderes do templo, o conhecido episódio evangélico. A presença dos mercaderes no Templo de Jerusalém, evidencia o grau de corrução moral e religiosa daquela época, e o desleixamento das autoridades hebreias.

O novo profeta dizia que o Reino de Deus habitava em cada coração humano. Quando os fariseus lhe perguntavam quando chegaria aquele, o Mestre (como lhe chamavam os seus discípulos) respondia: o Reino de Deus não vem de maneira ostensivaNinguém poderá afirmar: “ei-lo aqui” ou “ei-lo ali”, pois o Reino de Deus está entre vós (Lc. 17, 20-21). Esta afirmação radical desmente, em minha opinião, a interpretação escatológica e apocalítica frequente, que diz que o Reino de Deus em João Batista e em Jesus, está relacionado com o Julgamento Final.

“O novo profeta dizia que o Reino de Deus habitava em cada coração humano”

Estoutra interpretação terrena, mas ao mesmo tempo profundamente espiritual, é a interpretação que fez Lev Tolstoi, o famoso romancista russo. E é obviamente uma interpretação que outorga o sentido genuíno àquela formosa frase, um sentido de plena transformação moral, política e social. Todo aquele que aceitar e praticar a Boa Nova, precisamente evangelion em grego, quer dizer, a mensagem de amor, de não violência e de perdão do Mestre, é uma pedra viva na Terra do edifício do Reino de Deus ou Reino dos Céus.

Tendo em conta que os textos evangélicos foram redigidos muitas décadas depois da morte do profeta do amor, seguindo apenas a tradição oral e escrita, e também conhecendo o que o estudo crítico dos textos sagrados nos fornece, hoje sabemos em boa medida o que foi acrescentado pelos autores dos Evangelhos apologéticos, sem dúvida muito. Em minha opinião, além doutras múltiplas cousas mais ou menos constatáveis, muitos conteúdos sobre a vinda escatológica do Reino de Deus. Tudo isto numa época, em que estava já consolidada a doutrina oficial cristã, através nomeadamente do pensamento de São Paulo.

Os acréscimos mais evidentes dos evangelistas, são as duvidosas referências às profecias anteriores do Antigo Testamento, que na teoria antecipam a vinda do Mestre como o Messias desejado do judaísmo, o Ungido (Christós em grego), o rei poderoso de Israel, um novo David, o governante esperado pelo povo. As manipulações de muitos dos textos bíblicos veterotestamentários, para tirá-los de contexto e empregá-los como profecias a respeito da futura vinda de Jesus como o Messias, são claramente expostas no excelente livro de Pepe Rodríguez Mentiras fundamentales de la Iglesia Católica. Apesar do título lapidar, é uma obra em linhas gerais rigorosa e documentada, contendo uma grande percentagem de verdade e objetividade, para além de crenças ou descrenças religiosas.

Mas apesar de tudo isto, transparece ao longo dos quatro textos canônicos a figura de um profundo reformador da Lei de Moisés, uma pessoa íntegra e valente, capaz de se confrontar face a face com as armadilhas dialéticas e as falsidades dos fariseus e dos mestres da Lei, além dos incrédulos saduceus, todos eles fazendo parte importante do poder religioso da sua época. O filho de Maria era ciente dos grandes riscos que corria ao exprimir livremente o seu pensamento, tanto a respeito da ortodoxia judaica, quanto ao poder romano.

A sua autoproclamação como Messias, a sua entrada triunfal em Jerusalém montado numa burra, incarnando-se no rei humilde de Zacarias (Zac 9, 9-10), num momento histórico em que existia na gente uma  grande esperança messiânica davídica, só pode ser a clara manifestação da classe heterodoxa de Messias que Jesus queria ser, um líder espiritual popular, ao lado das classes trabalhadoras. Aquele que foi ungido não com o óleo real, como Saúl ou David, senão com as águas do batismo, exatamente como muitos outros indivíduos da sua própria nação.

ABBÀ E A VIDA E DOUTRINA DE JESUS

Do duplo perigo, face à ortodoxia hebraica e ao poder romano, é testemunho a famosa passagem do tributo ao César, tradicionalmente interpretada pelo catolicismo -para manter a sua conivência com os poderosos, os seus privilégios e o seu poder temporal como Igreja-, como a submissão devida do crente ao âmbito civil, e a separação definitiva entre os dous poderes, o eclessiástico e o político: dai, pois, a César o que é de César e a Deus e o que é de Deus (Mt 22, 21).  Na verdade, o Mestre não legitima o tributo ao César, apenas descobre a armadilha das elites colaboradoras com a opressão romana, chamando-as de hipócritas segundo Mateus (Mt 22, 18), cobradoras também do imposto do Templo, tributo nacional do qual o profeta como filho da sua terra, se declara isento (Mt 17, 26). O estranho milagre com que o evangelista tenta arranjar esta rebeldia religiosa, para evitar o escândalo, com Pedro a achar uma moeda na boca de um peixe, não faz mais do que reforçar a tese da insubmissão tributária.

O profeta não pode falar com clareza, sob o risco de ser denunciado ante a autoridade imperial pelos seus interlocutores, antes de ter acabado a sua prédica diante do povo. O que faz é patentear a miséria daqueles judeus que reconhecem a autoridade do César, e perguntam se é lícito ou não pagar os seus tributos. Daí que lhes diga que lhe mostrem a moeda, e também que lhe digam de quem é essa imagem e essa inscrição, cousas todas obviamente já conhecidas por ele: Mostrai-me a moeda do imposto. Eles apresentaram-lhe um denário. Perguntou: “De quem é esta imagem e esta inscrição?” “De César” responderam (Mt. 22, 19-21). A seguir responde-lhes com a famosa frase acima mencionada, quer dizer, se aceitais a autoridade do César e pagais o denário, continuai a fazê-lo. E continuai também com o imposto do Templo, se pensais que é lícito que Deus possa cobrá-lo. Uma labaçada moral na cara. A dúvida a respeito do imposto romano, ao ocultar Jesus o seu pensamento, fica resolvida ao ele igualar os dous tributos, o civil e o religioso. Aliás, a sua oposição ao último fica muito clara em Mt 17, 26. A conclusão é que o Mestre coloca ao mesmo nível, quanto ao seu carácter absurdo, os dous impostos.

A importância deste trecho evangélico é imensa: o nazareu põe em prática os seus dous mandamentos essenciais, amor a Deus e amor ao próximo, dos quais cumpre falar nos parágrafos seguintes. Se São Paulo e os denominados pais da Igreja -os que criaram os alicerces teológicos e ideológicos do primeiro cristianismo-, na vez de fundamentar a sua doutrina nos elementos míticos do Ungido: ressurreição e deificação, tentassem interpretar genuinamente a frase do tributo ao César, a História da Humanidade poderia ter mudado radicalmente. Com efeito, a interpretação genuína implica a insubmissão cristã perante o poder estabelecido, perante o Estado. Mas não quiseram fazê-lo, é claro.

Não podiam fazê-lo, porque então teriam de reconhecer o carácter profundamente político e revolucionário da vida e da mensagem do filho de Maria, como defensor da liberdade, e portanto o conflito constante com as autoridades civis. Tinham de fazer uma interpretação literal e errónea, para transmitir à posteridade a imagem de um Messias neutral, a dividir claramente a esfera religiosa e a política. E contudo, o cristianismo primitivo foi um movimento subversivo durante os seus primeiros séculos no Império romano, tendo renascido de novo como energia civilizadora e democrática na época medieval.

O Mestre assumiu sem dúvida o papel de servidor e defensor do povo, oprimido pelas castes dominantes judeias e o imperialismo romano, abafado pelos tributos, e pela hipocrisia, espiritual e política, das suas elites religiosas. Falava com as multitudes que o seguiam na sua própria língua, em arameu, empregando parábolas rurais para que a gente, muitos deles camponeses, pudesse compreender melhor o sentido do seu discurso.

Máis de Manuel Meixide Fernandes