Perante a divinização dogmática do Messias, a tarefa necessária e urgente é recuperarmos toda a sua humanidade, tanto para aqueles com convições religiosas ou espirituais, quanto para aqueles que se autodenominam ateus ou agnósticos. O seu programa é profundamente reformador, não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição (Mt 5, 17). Levá-los à perfeição, não pode significar outra cousa mais do que pôr plenamente em prática na sociedade, a Lei e a doutrina dos profetas. Ele é no fundo um programa revolucionário, porquanto representa na Terra o Reino de Deus, o reino do amor, da fraternidade universal e da não violência, com as imperfeições próprias da natureza humana. A nível político implica a igualdade radical entre todos os seres humanos, e o abandono progressivo de qualquer tipo de violência social: exército, Estado, leis, dinheiro, elites…
Esta radicalidade não é uma radicalidade sem fundamento, apenas desejada pelos leitores dos Evangelhos, muito pelo contrário deriva-se de jeito nítido dos dous mandamentos essenciais para o Mestre, também presentes no Antigo Testamento: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dous mandamentos dependem toda a Lei e os profetas (Mt. 23, 37-40). Se dependem toda a Lei e os profetas do amor ao próximo, como é possível conceber a ideia de um monarca, de um rei que impera sobre os demais, meros súbditos ou subordinados daquele que tem a prerrogativa de dominá-los? E o mesmo argumento se pode empregar substituindo monarca por Município, Estado, República… Por trás de todos esses entes políticos e jurídicos, também estão indivíduos: presidentes, alcaides…
A lei do amor ao próximo exige igualdade moral e política estrita, e a elaboração de uma autoridade coletiva e consensuada, democrática, nunca imposta. A nossa democracia liberal representativa, também fica sob suspeita. É absurda a obediência cega ao poder político estabelecido pregada por São Paulo, cuidadosamente mantida pela Igreja Católica ao longo do tempo, a contradizer claramente a doutrina de Jesus. O amor não é apenas caridade para aquele que precisa de ajuda material, senão sobretudo fraternidade sem fronteiras, abrangendo por força a esfera política e legislativa. A sua aplicação universal, garante a liberdade política para todos, e com relativas restrições – coroa, senhores, poder eclessiástico nomeadamente -, materializou-se no período medieval na Europa cristã, na democracia autárquica, em vilas e em freguesias, apesar das aberrações teológicas e dos dogmas impostos pela Igreja de Roma.
No âmbito religioso também significa a abolição do sacerdócio levítico, da hierarquia eclessiástica, e a desaparição da distinção hebreia clássica entre o profano e o sagrado. Por tudo isso, o filho de Maria era um grande perigo para o poder judeu da época. Representava sem dúvida a democracia, a ausência de monarquia (de Messias), de Sumo Sacerdote e de Sanedrim, em definitivo, o poder popular em toda a vida do povo hebreu.
O primeiro mandamento, percebendo Deus como sinónimo de verdade, e portanto também de justiça -a conceção da divindade única presente no Antigo Testamento-, significa a obediência consciente a estes ideais universais. De jeito claro e rotundo está expresso no livro de Isaías, quando Javé fala pela boca do profeta : O jejum que me agrada é este: libertar os que foram presos injustamente, livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade os oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão (Is 58, 6). A obediência mecânica ao poder ilegítimo, não democrático, só pode ser percebida como obediência coercitiva, causada pelo medo ao peso da lei. Nunca como uma obediência devida, no sentido paulino. Em todo o caso, para os crentes, deve ser mudada e abolida, substituída pela obediência consciente a Deus que os obriga a lutar, a quebrar toda a espécie de opressão, a fazer a revolução.
A qualidade universal da fraternidade e do amor ao próximo pregados pelo Mestre, por outras palavras, a implementação da igualdade de status moral, político e religioso para toda a população judaica, e mesmo não judaica (neste último caso apenas moral e político), ficou belamente exprimida numa das passagens mais formosas da Bíblia, muito bem conhecida, a Parábola do Bom Samaritano. Face à pergunta de um doutor da Lei acerca de quem é o seu próximo, após ter ele escutado os dous mandamentos primordiais acima mencionados, Jesus respondeu-lhe com aquela parábola: o homem hebreu magoado e roubado pelos salteadores, moribundo, só foi ajudado por um estrangeiro, um samaritano. O sacerdote e o levita, dous judeus, passaram ao largo. O profeta finalmente devolve a pergunta: qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu: “O que usou de misericórdia para com ele”. Jesus retorquiu: “Vai e faz tu também o mesmo” (Lc 10, 36-37).
A pergunta do doutor da Lei estava envenenada. Segundo o Pentateuco, só os membros do povo de Israel constituem o próximo, não o estrangeiro. Os judeus evitavam o contacto com os samaritanos por causa da sua origem semipagã, mas apesar desse fundo desprezo para o seu povo, é um estrangeiro o único a se comportar com compaixão, humanamente, diante do sofrimento alheio. Pouco lhe importou ao samaritano, que fosse um judeu quem estava a sofrer. Vai e faz tu também o mesmo. Comporta-te segundo a lei universal do amor ao próximo, a todos os homens, e mostra a tua compaixão pelos teus irmãos samaritanos. Segue o exemplo da parábola, mesmo com risco de ser censurado pela tua comunidade.
Com esta alegoria, o profeta nazareu demonstra que veio aperfeiçoar a Lei de Moisés. E a mesma argumentação é válida para o Decálogo. A proibição não matarás não é apenas para os membros das tribos de Israel, senão para todos os seres humanos. A origem da imoralidade que espalham muitos versículos do Antigo Testamento, Pepe Rodríguez fala de mais de 4000, está em boa parte nesse Javé dos exércitos, sedento de sangue e implacável com o inimigo, e também nesse pretenso supremacismo étnico, moral e religioso fundamentado na aliança com Abraão e na circuncisão.
A originalidade de Jesus é instituir a intimidade e a afetividade na oração judaica, ao empregar o termo aramaico Abbà para invocar a Deus, por exemplo no Pai-Nosso, a palavra que as crianças começam a balbuciar para se referir ao pai. Esta ternura entre os seus filhos e Deus, esta possibilidade de chamar Deus de papai, fala-nos do profundo carácter humano do filho de Maria, e da artificialidade da sua divinização dogmática. E faz com que nos esqueçamos da possibilidade de ele ter falado realmente do inferno, ou de qualquer tipo de castigo terrível. Esta ternura para com Deus, é qualquer cousa novidosa no judaísmo, e mesmo é considerado pelos seus contemporâneos como algo irrespeitoso, se calhar blasfemo.
A oração do Pai-Nosso suprime qualquer intermediário sagrado entre Deus e a sua criatura, e comunica de jeito direto o homem com a divindade. No Antigo Testamento, é mencionado Deus como Pai apenas umas poucas vezes, e quase sempre num sentido de profundo respeito. É muito significativa esta ausência do vínculo paternal e do afeto a ele ligado, num texto tão extraordinariamente longo, mas o que lá prevalece é o temor excessivo.
Qual a necessidade agora, com esta abolição radical da distância entre Criador e criatura, de um templo e de um sacerdote? Jesus fala com clareza quando diz: quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há de recompensar-te (Mt. 6, 5-6). O templo é qualquer lugar, e o rito é apenas o próprio Pai-Nosso. Sem rituais externos, não é preciso qualquer sacerdote: hebreu, católico, evangélico ou protestante. O culto é expressado através da oração entre o crente e Deus, através dessa ternura e dessa comunhão.
EPÍLOGO
Cumpria obviamente entregar este grande revolucionário -se calhar o mais grande revolucionário que tenha existido-, à lei romana, após tê-la violado autoproclamando-se Messias (rei dos judeus), entrando em conflito com a figura do César. Este valente doutor da Lei, grande conhecedor da Torá, filho de um carpinteiro, e apaixonado pelas classes oprimidas. Se a sua doutrina e a sua coragem prendessem definitivamente nas multitudes, tudo estaria pronto para uma perigosa revolução social na Palestina, e o statu quo de todas as autoridades políticas e religiosas hebraicas, mudaria radicalmente. O mesmo aconteceria sem dúvida, com as autoridades civis romanas.
O partido dos zelotes, que na época do Messias fomentava a luta armada contra Roma, estava a cair no erro de pensar na abstração da libertação nacional, sem ter em conta os problemas concretos das classes populares: a hierarquia religiosa e sacerdotal, a desigualdade, a corrução da religiosidade, a pobreza… Por isso, o verdadeiro nacionalismo começa sempre pela inspiração no povo. Lembremos a frase de Gandhi, o político sempre tem o povo como celeiro inesgotável. O povo é sempre o começo. Também é evidente que o primeiro mandamento do Mestre, obrigava a desobedecer de jeito não violento as leis romanas, a pegar com valentia na bandeira nacional da liberdade.
Como na passagem do tributo ao César, o filho de Maria levou até ao fim a prática dos seus dous mandamentos essenciais. O amor a Deus (à verdade), e o amor ao próximo (ao seu povo, e a todos os habitantes da Palestina), fizeram com que acabasse morrendo na cruz. Tornou-se um novo Messias, alguém que não foi ungido como rei de Israel. Ergueu-se contra o poder judaico, mas também contra a autoridade romana. Tornou-se um novo rei, um líder e mestre espiritual ao lado das massas populares. Ele sabia que apenas fazendo isso, estava condenado a morrer crucificado segundo a lei de Roma, mas aceitou o seu destino. Nunca se submeteu, lutou e mostrou ao povo o caminho da luta e da dignidade, da desobediência e da insubmissão. Morreu como viveu, com valentia. Sabia que o único jeito de acabar com a opressão que sofriam os seus compatriotas, era a oposição radical não violenta à ditadura religiosa judeia, hipócrita, opressora das classes populares, incumpridora da Lei hebreia, e colaboracionista com o Império romano. Mas também sabia que lá nessa dignidade nacional e popular, era inevitável o confronto com o jugo imperial.
A sua incarnação como Messias ou libertador humilde, também é a voz dos hebreus oprimidos pelo estandarte do César. Se escolhesse a luta violenta, não mudaria o seu castigo na cruz. Mas escolheu a via do amor e da não violência, da desobediência pacífica, civil e religiosa. A sua morte é produto do seu amor pelo povo, e pode ser chamada de patriótica, como a execução dos zelotes revoltados. Mas também é produto do seu amor pela verdade e pela não violência, e é portanto uma morte espiritual.
O materialismo capitalista da nossa época, o mais grande materialismo da História, em termos mentais e materiais, rejeita qualquer tipo de axiologia ou de escala de valores, e isto é a grande desgraça da nossa era. O único a ter valor é o Bezerro de Ouro, o ídolo da abundância material. Sem valores é impossível encetar qualquer revolução positiva. E uma hipótetica revolução sem aqueles, uma mudança, poderia mesmo empiorar as cousas. O corolário do rejeitamento ou desprezo da moralidade, é a mesma atitude para a religião e a espiritualidade. Não há qualquer interesse por elas, apenas de um ponto de vista humanístico, sem subscrevermos essa cosmovisão.
O discurso liberal do poder estabelecido contemporâneo, em grande parte positivista e progressista, considera em geral as religiões e a espiritualidade como elementos históricos do passado, opressores para a população, causa de guerras, ignorância e cega adoração. Mas a verdadeira espiritualidade está cheia de valores, e essa plenitude ética é interessadamente ignorada na visão retrógrada e não objetiva que do mundo espiritual tem o Estado pós-moderno.
A sobranceira figura de Jesus Cristo, a personagem histórica mais transcendente, tergiversada ao longo dos séculos pela cúpula da Igreja que ele mesmo na teoria fundou, é o melhor exemplo de radicalidade religiosa e espiritual. Lá fundem-se a religião histórica e os valores espirituais, ficando estes por cima daquela. É a perfeição da Lei de Moisés, a universalidade do amor para com todos os seres humanos, a começar na própria terra do profeta crucificado.
A História está cheia de paradoxos, e apesar do falseamento teológico da sua figura, nomeadamente com a implementação do dogma constantiniano e pagão da Santíssima Trindade, no Cocílio de Niceia do século IV d.c., sem toda essa deturpação doutrinária, a sua vida e a sua mensagem não seriam universalmente conhecidos. O catolicismo tornou populares os Evangelhos, sempre da sua ótica teológica e dogmática.
Foi também Saulo de Tarso, após ter-se tornado apóstolo do Messias e abandonar a sangrenta perseguição dos seus seguidores –facto assombroso que requereria alguma explicação plausível e outro artigo-, foi o futuro São Paulo com a sua interpretação da figura do nazareu, e com os seus erros, sem ter conhecido nunca Jesus, quem propagou o seu nome fora das fronteiras da Palestina. Morto o profeta, o movimento foi nas décadas seguintes lá perseguido, após a repressão inicial e a desaparição do líder. Com a morte de Tiago o apóstolo em Jerusalém, continuador da velha liderança, apedrejado sob as ordens do Sumo Sacerdote Ananus ben Ananus em 62 d.c., o novo movimento fica muito debilitado. Sem São Paulo, a posteridade nunca teria ouvido falar de Jesus de Nazaré.
Para além de tudo o sobrenatural, milagres atribuídos que também outros profetas realizaram anteriormente, Elias ou Eliseu, por exemplo, e de uma possível explicação satisfatória para a miraculosa ressurreição, o importante do Messias ungido nas águas do Jordão, foi a sua vida terrena e a sua doutrina. Esta é universal, sem fronteiras geográficas. Aquela foi uma vida de sacrifício e de serviço ao seu povo, em incansável peregrinagem através das poeirentas terras da Palestina: mas o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça (Mt 8, 20).
É absurda a importância dada à ressurreição por São Paulo e posteriormente pela Igreja Católica, ao ponto de dizer que sem ela a fé em Jesus não faz sentido. A fé no filho de Maria é a fé na grandeza do ser humano, e também na grandeza de Deus, entendido como motor inefável (existente ou não), para a realização humana do bem na Terra. Aliás, se outra vida existe, além da material, a própria experiência e a razão terão de o dizer, não qualquer ressurreição da carne. Foi a imensa fé em Deus que tinha Jesus a que o fez caminhar sem descanso, sem se poupar, arriscando a sua vida, confrontando-se com os poderosos. A fé numa Verdade transcendente, puxou-o a uma luta não violenta contínua pela justiça, a igualdade e a liberdade, tendo como única arma a palavra. Só parou quando lhe tiraram as sandálias.