Abraço da Saudade I

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Rectificare sapientis est. E o que vem a seguir é bem conhecido. Todos cometemos erros com frequência, e como dizia Jesús no Evangelho, aquele que não tiver pecado, atire a primeira pedra. Ora bem, acho um dever individual e público corrigir o erro. Porque a verdade é qualquer cousa fundamental e imprescindível. E se muitas vezes achá-la é uma tarefa difícil, o simples facto de procurá-la já nos enobrece. No mês de dezembro de 2016 foi publicado no PGL pelo autor deste artigo, um texto intitulado A urna do povo, no qual se fala da Galiza como o território tradicionalmente com as maiores taxas de abstenção do Reino de Espanha. Cumpre relativizar esta afirmação, contrastando mais pelo miúdo os dados, como muito bem apontou o Alexandre Banhos no debate posterior.

Antes de mais, cumpre dizer que a Galiza regista recordes de abstenção nas eleições autonómicas de 2012 e 2016, ultrapassando o 45% em ambos os casos, segundo dados da Xunta de Galicia. A abstenção cá é sempre forte, com uma média de 42,34% nas três últimas eleições galegas. Porém, esta abstenção baixa a respeito das outras, estatais e autárquicas, ficando na média do Estado. Um dado interessante é comprovar a constância abstencionista das duas comunidades autónomas insulares, Canárias e Baleares, com taxas de abstenção que ultrapassam quase sempre o 35% em todas as eleições do Reino de Espanha.

As eleições em minha opinião importantes são as nossas, as autonómicas. O erro foi ter citado também as outras. De qualquer jeito, a abstenção é qualquer cousa secundária no artigo mencionado acima. O tema fulcral é a reformulação do galeguismo e do nacionalismo, tendo em conta o nosso tradicional ceticismo perante as instituições e as ideologias políticas. Naquele artigo falou-se da procura de um novo galeguismo, capaz de superar a etapa colonialista ou de autonegação na que ainda nos achamos.

Falou-se em que é preciso um novo galeguismo tradicionalista e para além das ideologias, que tiver como elemento essencial a tradição e a cultura do nosso povo. Um galeguismo inclusivo e popular, capaz de conexionar a população galega em redor do País, em que o reintegracionismo teria de ter um lugar preeminente. Faltou dizer ainda o mais importante, qual é a chave para atingirmos esse novo galeguismo. Qual é esse antídoto, se existir, para a cura do colonialismo que nos abafa.

 

 

A demorada e implacável desaparição da nossa língua obriga-nos a reagir, a procurar soluções. Não podemos aceitar a terrível sentença do sistema: a morte inevitável em longo prazo da nossa cultura. Reagir pode significar enganar-nos. Mas significa lutar. E a luta sempre paga a pena, apesar dos erros. Talvez após muito enganar-nos, possamos achar na nossa procura o jeito de mudar a situação do nosso idioma. E se isto não for possível, tivemos no mínimo a valentia de tentá-lo.

Neste sentido, e para tencionar o achado desse antídoto, cumpre falar antes de um livro, La democracia y el triunfo del Estado, de Félix Rodrigo Mora. Esta obra-prima do pensamento, em que o autor se mergulha na génese do nosso sistema político e económico atual, com rigor de erudito e uma amplíssima documentação, desvenda a falácia da nossa democracia moderna, tirando-lhe a máscara ao sistema graças ao profundo estudo histórico do século XIX, nomeadamente na Península Ibérica. A conclusão é simples, mas arrepiante: a passagem do Antigo Regime para o sistema liberal não foi qualquer cousa positiva e necessária, foi na verdade a passagem para um regime de ditadura, sob o controlo do Estado.

A democracia popular, vigente desde a época da Alta Idade Média nos concelhos abertos, apesar da instituição da coroa, vai desaparecer definitivamente a partir de 1789, com o nascimento da Modernidade e do Estado-nação. A Constituição de Cádis de 1812 teve sucesso a sangue e fogo, destruindo vilas inteiras, como aconteceu na Catalunha. A Constituição de 1978 que hoje temos não é mais do que uma herdeira da primeira constituição liberal, ainda com as tropas de Napoleão assentes na Península.

Ninguém na escola nos falou desta forte oposição popular, só de uns quantos curas reacionários e fanáticos. O objetivo do novo sistema liberal foi destruir a velha democracia rural, tomando posse das vastas terras comunais. Por outras palavras, aperfeiçoar a coroa, tornando-a um novo Estado muito mais eficiente e muito mais forte.

Segundo Rodrigo Mora, este objetivo nasce no século XVIII, o século da Ilustração. São os filósofos ilustrados quem vão traçar as linhas mestras do pensamento liberal, implementado manu militari no vindouro século. A pesquisa filosófica de Rodrigo Mora, da época de Platão até à atualidade, vai encetar a tarefa de um novo conceito de revolução, ultrapassando a ideia tradicional do socialismo clássico.

 

 

 

A dicotomia Estado / democracia ou ruralidade, esta última baseada na fraternidade entre os indivíduos, está presente ao longo de todo o livro. Para Rodrigo Mora um dos grandes erros da nossa civilização industrial é a estatolatria, a adoração do Estado como instituição imprescindível, até ao ponto de acharmos impensável a existência de uma sociedade além do âmbito estatal. Cumpre mencionar também o monacato revolucionário, denominação empregue pelo autor para falar da revolução civilizante da Alta Idade Média, iniciada por Beato de Liébana após a queda do Império Romano de Ocidente, a grande ditadura da Antiguidade.

É o cristianismo, sob a sua versão mais radical, que vai criar os alicerces dos concelhos abertos, a democracia popular e autárquica que existirá até à época da revolução liberal. O convívio da democracia popular e local com a instituição da coroa e com o sistema feudal, muda a nossa visão da Idade Média, tergiversada pelo poder político liberal e capitalista.

No intuito de achar uma nova ideia de revolução, a premissa sine qua non para atingirmos um sistema político democrático, Rodrigo Mora define a seguir a axiologia imprescindível. No canto da hegemonia dos múltiplos bens materiais, instituída pelo Estado capitalista e liberal, devemos recuperar os bens espirituais, entre eles a própria privação material. Os nossos antepassados tinham poucos bens materiais, mas muitos espirituais. Sabiam conviver em comunidade, amavam a terra, os animais e a natureza, e tinham uma riquíssima tradição oral e musical, sendo mesmo fabricantes de instrumentos musicais.

Se a cultura galega esmorece hoje, numa lenta, dolorosa e alienante agonia que se torna intolerável nas novas gerações, é em minha opinião por causa da perda do nosso bem espiritual mais importante, a saudade. Ainda conservamos o termo morrinha e o seu sentimento, mas a morrinha é qualquer cousa circunstancial. A saudade é algo mais profundo e permanente. Perdemos a palavra e o significado desse sentimento indefinível, mistura de poesia e de ternura, essa pura beleza que ninguém pode nem poderá nunca exprimir de jeito preciso com a linguagem, e que humedece cada sílaba que pronunciamos, mesmo em castelhano. A formosa melodia do nosso falar, o nosso sotaque, está trespassado sempre pela alma dessa misteriosa palavra, embora já não a reconheçamos.

O imperialismo espanhol e o seu idioma, uma língua rígida e com pouca musicalidade na sua variante europeia (o castelhano standar), desgarraram a nossa essência mais profunda, e em troca deram-nos a beber o veneno da vergonha e do autodesprezo. O imperialismo pacato, arrogante e excludente, intolerante com tudo o que não é ele próprio, com tudo aquilo que não conhece. Desprecia cuanto ignora, dizia Antonio Machado.

A nossa identidade nacional nasce no século XIII, na época da lírica galaico-portuguesa. É a época da consolidação e do esplendor da nossa língua. Ainda não existe o que hoje chamamos Espanha, e a nossa cultura é apreçada na Península, nomeadamente em Castela. Os nossos trovadores nessa altura começam a empregar o termo soidade ou suidade, num sentido já diferente do latim solitate, solidão. A nação nasce no berço da soidade ou da suidade, um termo ainda pouco empregado.

Coincidindo com a minha reflexão pessoal sobre a nossa alma coletiva, olhei na wikipédia uma cousa bem interessante. Lá pude ler que para os tradutores profissionais británicos, a bandeira da nossa pátria, única no mundo das línguas românicas, acha-se entre as palavras mais difíceis de traduzir. Depois quis descobrir qual palavra usariam os britânicos para falar do nosso ser mais profundo, empregando o tradutor de Google. Lá encontrei o termo missing, quer dizer, perda, ausência. Gostei da tradução, que por força tinha de ser deficiente, e que revela que a nossa essência é mais bem compreendida nas nações irmãs, nas nações atlânticas, onde podem existir sentimentos similares.

Experimentei com muitas línguas, e quase todas empregavam o termo grego nostalgia, adaptado à diversidade fonética. Não gostei desta escolha, a tradução castelhana habitual, porquanto o nosso espírito nacional é muito mais do que mera nostalgia ou melancolia. Afinal, os tradutores profissionais britânicos é que têm razão. Contudo, a primeira definição do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, apesar de usar também o termo melancolia, coincide no essencial com a palavra inglesa missing: melancolia causada pela lembrança de um bem de que se está privado.

Acho que o meu bisavô, nascido na comarca de Chantada em 1890, sabia o que era a nossa alma nacional quando falava, sentia-a e espalhava-a no ar com as suas palavras, embora nunca ouvisse o vocábulo nos seus lábios. Há algumas semanas, falando com a minha mãe deste assunto, ela disse que tinha ouvido na sua infância o elo perdido, por boca do seu avô. Creio que a sua geração foi a última em conservar a alma da nação, e que a partir do século XX, com a consolidação do Estado liberal espanhol, a saudade morreu, os filhos deixaram de compreender e de sentir aquela herança dos pais, e a língua seguiu a se conservar, mas sem a sua seiva vital, sem a compreensão da sua própria beleza.

 

 

 

Recuperarmos o termo e o significado da nossa palavra nacional, com a ferramenta imprecisa e deficiente da linguagem, e mesmo com outro tipo de ferramentas, para tentar senti-la de novo, é recuperarmos o velho amor pela língua, perdido na névoa das últimas gerações, é namorar-nos de novo do nosso idioma. É, portanto a recuperação mesma do País e da sua identidade. O nosso principal problema não é a Galiza castelhano-falante, monolingue em espanhol. Também não é a Espanha, entendida como Estado antigalego no que fomos condenados a morar. A nossa eiva, a nossa parálise, somos nós próprios, é a Galiza galego-falante.

Falamos um galego ateigado de preconceitos, emporcalhado com esse lixo que Concha Rousia menciona num poema. E vimos a pensar que essa sujidade faz parte da nossa fala, quando não é mais do que a expressão mais degradante do colonialismo, em seu afã de escarnecer e submeter aquilo que é diferente. Os galego-falantes vimos então a deitar também lixo na nossa língua, empregando-a com frequência toscamente, aceitando a tirania do castrapo, e achando-a quase sempre inferior ao espanhol, a língua refinada, bela e culta, em oposição ao galego, o falar rude, rústico e feio. A dialética clássica entre língua civilizada e língua indígena, entre colonizador e colonizado, entre língua do poder ou dominante e língua dominada.

Com a perda da saudade perdemos a nossa estética, já não somos cientes da imensa beleza do nosso idioma, cheio de musicalidade e de doçura, e o caminho fica livre para a invasão do castelhano. A Galiza galego-falante, despossuída da sua identidade e da autoestima, de costas carregadas com o fardo do autodesprezo, ora abandona o galego dos seus devanceiros, ora não é capaz de transmitir o entusiasmo pela língua própria para aqueles compatriotas que nunca a empregam. Aliás, já tanto faz se falamos galego ou castelhano, ou se os nossos filhos ou netos falam uma língua ou outra. Os Galegos, presos no cárcere da desvalorização e dos preconceitos cara o seu próprio idioma, aceitam em geral o esmorecimento da sua língua como qualquer cousa inevitável, lógica e às vezes mesmo desejável. Os próprios Galegos são sempre o principal problema do galego. É o bilinguismo desleixado, e não harmónico como dizia o PP na época do fraguismo.

Destarte, a única virtude que fica em nós, o povo resistente que ainda teima em erguer as palavras dos seus antepassados, as palavras saudosas, defensor de uma causa que achamos já perdida, é a lânguida teimosia perante o assédio do poderoso inimigo. A estratégia defensiva aquém das muralhas, sem descer nunca ao campo de batalha, até à inevitável derrota final. A estratégia do Monte Medúlico semelha ser a única possível no nosso espírito, resignados a resistirmos até ao momento da morte, até ao momento da extinção da nossa voz e da nossa cultura na Galiza.

Continuará…

 

 

Máis de Manuel Meixide Fernandes