Tenho pensado algumas vezes, não muitas, se não teria sido melhor ter nascido em terra livre, emancipada pelo menos culturalmente, em terras além-Minho, onde os pés puderam pisar soberania portuguesa, na velha Galécia por exemplo. Agora mesmo estou a pensar na zona minhota: Caminha, Viana do Castelo. Mas também poderia ser em Trás-os-montes, em Montalegre, vila de fermosas lembranças para mim: nessa vila descobri que o apelido Meixide era uma freguesia do Barroso. Se não teria sido melhor ter nascido em Portugal, nessa nação soberana onde o galego ou o português não estivesse em permanente perigo, ameaçado de desaparição. Num território livre do colonialismo, onde a cultura própria pudesse florecer, onde a normalidade for a regra e não a exceção.
Esta fantasia patriótica sempre acaba do mesmo jeito: é um privilégio que o destino, a fortuna dos clássicos, ou Deus -essa causalidade que mora bem longe do acaso-, tivesse escolhido como o nosso berce, os vales galegos sob jurisdição espanhola, no meu caso a comarca de Chantada. É um privilégio morarmos desta beira da raia, essa raia inexistente que não conseguiu dividir a mesma língua. É uma grande honra pertencer ao povo galego, a um povo oprimido ao longo dos séculos pelo imperialismo espanhol, devastado pela emigração, desprezado pela cátedra cultural da corte, com um idioma escrito deturpado pelo castelhano, mas em posse de uma resiliência titânica, de uma teimosia de ferro que o levou a preservar até hoje a sua cultura e a sua identidade contra vento e maré.
O privilégio é sempre lutar por aquilo que é justo, estar na trincheira da causa justa é sempre um grande honor, e tira qualquer tristeza e qualquer dor ao vermos o declínio incessante da nossa língua. Viver na normalidade é muito bom, viver na luta pela justiça eleva-nos moralmente. Por outras palavras, a vida atinge o seu pleno sentido quando é confrontada com a injustiça e o mal. O barro começa a lavrar-se. Até mesmo a própria inação ante a opressão, está a interpelar o sujeito, está a exigir uma ética que possa justificar essa atitude. No caso galego, a obediência a Espanha, a pretensa liberdade lingüística, o desprezo cara uma língua rural, local e bárbara na mente dos assimilados…
É sem dúvida uma causa justa a luta pela preservação de uma língua e de uma cultura próprias, a serem esmigalhadas pelas mãos do imperialismo, a procura da soberania moral e política de uma nação secularmente oprimida. A emergência lingüística que hoje padece a Galiza, não é mais do que o sintoma dessa opressão secular e sistemática, a chegar agora à sua fase final nestes anos da maravilhosa era digital. Não é apenas a política lingüística errada da Administraçao Autonómica, nem sequer a suspeita de uma politítica anti-galega ou favorecedora do castelhano, de um espanholismo ou colaboracionismo mais ou menos evidente, senão também a desvinculação prolongada da sociedade galega a respeito dos seus sinais de identidade, o que faz com que tenhamos a situação atual.
Se o corolário do colonialismo em todos os países, foi sempre a introdução do seu veneno e da sua mentira nas veias dos indígenas, quer dizer, que aqueles vejam a sua cultura como inferior e renunciem voluntariamente a ela, trocando-a pela cultura forânea, a emergência lingüística é ou será sempre inevitável. O único jeito de evitá-la é a morte do sistema colonial, mas para isto é imprescindível um patriotismo ativo, firme e radical, alicerçado na prática, prévio e posterior a qualquer tipo de independência política.
Um patriotismo indígena, recuperando toda a potencialidade dessa cultura concreta, no nosso caso o carácter internacional, mas sem criarmos qualquer retórica, a libertação nacional começa na língua, mas de jeito inconsciente. É um processo em que nos sentimos de novo identificados com o que somos, em que somos quem de empregar a ferramenta da nossa língua para sermos galegos, algo que ninguém mais do que nós pode ser. Em definitivo, matar o veneno do colonialismo e os seus preconceitos com o antídoto do orgulho, do afeto. Este é um árduo processo psicológico de empoderamento emocional e identitário, mas bem sabemos que todas as mudanças importantes, tanto a nível individual quanto coletivo, começam no mundo das emoções. No coração está a chave da revolução. Se a identidade surdir, ainda que for uma criança a falar galego durante alguns segundos, o imperialismo também está a morrer durante esse tempo.
Durante os quase vinte e quatro anos que tenho de docência no ensino secundário como professor de francês, empreguei sempre esta língua e o galego como línguas veiculares; o castelhano apenas para realizar comparações gramaticais entre diversas línguas latinas, como também faço às vezes com o inglês, e quando a tradução é inevitável pelo desconhecimento do galego. Este patriotismo prático nas aulas não foi fácil, por enquanto na maioria das vezes a língua maioritária dos alunos era sempre o espanhol. Manter essa firmeza quotidiana de empregar sempre a língua própria no País, em todos os âmbitos, tem provocado conflitos mais ou menos relevantes com a rapazada. Mas também tem provocado o nascimento da primavera: um dia começas a escutar frases em galego; um dia fala um, dali a dous dias são dous…
Lembro uma turma de rapazes n’Ogrobe. Após o primeiro trimestre em que não pronunciavam o galego, começaram a usá-lo comigo supreendentemente a partir do segundo com bastante frequência, e assim até ao final do curso. O milagre tornou-se realidade. Tornou-se graças à firmeza de nunca ter empregado o castelhano. Esse é o único jeito de mudarmos as cousas. Esta experiência do milagre sigo a experimentá-la cada dia nas minhas aulas. E descobres que este rapaz ou aquela rapariga têm uma fonética galega incrível, um acento genuíno. Essa língua galega está silenciada pela vergonha do sistema colonial, neste caso a escola.
Sem negar a diminuição das competências em galego dos mais novos, acho que o principal problema hoje do galego segue a ser o de sempre: a falta de prestígio do idioma, e o melhor jeito de mudar isto, para além das políticas institucionais e a sua dimensão internacional, é usá-lo continuamente, com beleza e com orgulho.
O dia vinte e três de fevereiro, todos os galegos e galegas deveríamos na teoria acudir ou apoiar a manifestação histórica da Praça do Obradoiro. A situação de emergência lingüística tem de nos fazer reagir, não devemos cair no pessimismo, a pensarmos que tudo está já perdido e que a luta é qualquer cousa inútil. Cumpre erguer-nos, termos a valentia de continuar o combate. Este estado crítico, como acontece muitas vezes na vida, tem de nos outorgar forças centuplicadas, um novo oceano de dignidade, a vontade de pelejar dia e noite pela nossa sobrevivência. Como um grande facho, tem de ser o ponto de começo de uma longa luta patriótica, de um acordar coletivo, tendo como alvo a recuperação plena da nossa cultura e da nossa identidade. O apelo à luta popular e à transformação social significa por força a mobilização constante, com manifestações ou mesmo sem elas, a visibilizar socialmente o conflito, com energia positiva e optimismo. Não só a situaçao ainda é reversível, mas também poderia significar a reconquista lingüística da Galiza e a sua emancipação nacional, o fim do miserável estado de vassalagem.
A realidade está a nos dizer que se não lutamos agora intensamente com o compromisso firme de fazê-lo durante muitos anos, a lenta agonia da nossa língua acabará pela sua morte irremediável. Tenhamos o privilégio de lutar por ela, e se o seu destino apesar de tudo for desaparecer desta terra no oceano da História, nunca sintamos a derrota de ter participado na contenda, sintamos o imenso honor de nos ter elevado, ao defender a nobre causa da liberdade.