Nestes dias nos que o sionismo recrudesce o genocídio do povo palestino, ampliando ao Líbano o ataque desapiedado e impune a Gaza e Cisjordania, ao por-me no teclado para escrever o meu artigo, não podo pensar prioritariamente noutra coisa, unindo-me com impotência à dor desse povo. Só podemos solidarizar-nos, berrar nas ruas e… orar; tenho-lhe ouvido nestes dias a algum palestino que isto não é pouca coisa e que sigamos a fazê-lo.
Mas, ainda que tratei algo aqui o tema (“A memória palestina em galego”, 12/12/2023 e “Galiza e Palestina, 9/01/2024), esta página de Análise deve estar relacionada com a cultura galega. Nesta ocasião, o título pode surpreender a mais dum leitor; contudo, o mais aleuto pode topar a relação.
É conhecida a lenda de Décimo Júnio Bruto, general romano alcumado “Galaico”, que passou por estas terras como conquistador desse império. A lenda fala da chegada com as suas tropas ao pé do rio Límia chamado Lete, “esquecimento” em grego; quem ousava cruzá-lo perdia a memória. Para aleccionar às tropas e não quedarem paralisadas na beira, conta-se que passou ele primeiro e desde a outra banda foi nomeando a cada um dos soldados, provando que isso não era certo.
No passado 14 de setembro, Bruto volveu a entrar na história dois milénios depois para falar na Límia ante uns centos de romeiros que foram de toda Galiza celebrar a “XLVI Romaxe de Crentes Galegos/as”, desta volta em Lodoselo (Sarreaus-Ourense); uma romaria que organiza desde há mais de quarenta anos a Associação Irímia.
Após apresentar-se, o primeiro que diz Galaico foi: “Estou aqui para vos dizer que sou e me sinto galego, e para avisar-vos do terrível mal do esquecimento, quando o que esquecemos é algo tão elemental como ser galego, e tão humano coma são os cuidados… Não perdades a memória!”.
Os versos de Marica Campo com musica de A Quenlla diziam-no-lo ali, após varias décadas de ver a luz: “Regresade coa primavera nova nas mans das bolboretas… Regresade quebrando o desespero… Regresade co soño poderoso dos que fixeron patria…”
“A terra quer coidados” era precisamente o lema desta Romaxe. Para isso escolherom-se as terras da Límia e a paróquia de Lodoselo. E já temos a terceira pata do escano. Uma vizinha de Lodoselo diz o porquê: “É o lugar de Galiza onde se leva na mão, com mimo e devoção, tudo o que que compõe a nossa realidade: gente maior, gente nova, ânimas, terra e paisagem… uma realidade que é património das comunidades”.
Esta realidade começou há case 40 anos com o labor de “Preescolar na Casa”, que puxo a andar um trabalho formativo de casa em casa, alentando que “o que é necessário é possível”: construir a escola do povo, arranjar os caminhos, fazer a traída de agua às casas, unir-se fronte a injustiças partidistas e caciquismos… Tratava-se de activar a comunidade, com celebrações e acções comunitárias revalorizando o sentimento de que “juntos somos melhores”.
Em 1985 constituiu-se a Associação Cultural “O Cruceiro”, e no 1990 viria o feito clave: a criação do CDR (Centro de Desenvolvimento Rural ) “O Viso”, com o apoio de uns curas comprometidos com o povo: Digno de Arzadegos com o CDR “Portas abertas” e Miguel de Parada de Outeiro com “Eirada”. Não forom os únicos, e ali se lembrou também a Evencio Dominguez, Bieto Ledo, Camilo Modesto e outros, entre os que não podia esquecer-se ao ilustre Isaac Estraviz, que nasceu ao lado de onde foi a celebração. Sem esquecer as muitas mulheres, “praticamente as de todos os cuidados”.
Ao longo de anos, forom-se dando passos, com boas ideias e buscando os recursos para fazê-las realidade: “Foi o momento de gozar e sofrer, aprendendo e faceando”, dizia a vizinha. Os actores foram toda a gente do povo: “É coisa de todas e todos”, diz outra vizinha. Os cuidados concretarom-se em outras acções como Vivenda de maiores, Casa ninho, Jantares e acções nas casas, cuidado da terra, encontros…
Eu mesmo tive ocasião de participar num dos encontros de “O Viso”, convidado por Toño, homem generoso que foi peça fundamental em todo este processo. Foi nas “III Xornadas sobre Medioambiente, Ecoloxía e Sociedade” (Outubro de 1999), nas que tive uma concorrida e animada palestra: “Um cristão tem que ser um ecologista: De um ecologismo light a uma visão alternativa do sistema”.
Evidentemente, não se esqueceu nesta celebração solidária, ecologista e cristã o atentado à terra e às suas gentes que supõe o terrível projeto de Altri, “a zona de Galiza mais ameaçada hoje pelas gadoupas do capital”, como se diz ali com justiça.
A celebração rematou rezando o Nosso Pai e cantando o Hino galego.
[Este artigo foi publicado originariamente no Nós Diario]