Semanas e mesmo meses antes do Natal, as nossas cidades estão alagadas da sua tolemia consumista. Tenho falado e escrito muito desse Natal consumista que tem asolagado e deturpado o verdadeiro Natal cristão. Há um verso expressivo numa canção de Melendi: “La Navidad la ha inventao El Corte Inglés”; esta empresa diz num conhecido slogan: “Ya es Navidad en El Corte Inglés”. E ainda que mais grave semelha-me o slogan manipulador de Coca-Cola: “La Navidad es mágica cuando la compartimos”; a mágica é… a garrafa de Coca-Cola. Como é sabido, o gordo Papá Noel foi inventado pela marca americana, ao pôr-lhe a Santa Klaus –que leva roupa verde– as cores da marca –rojo e branco– para vender os seus refrescos no inverno, convertendo-se no símbolo por antonomásia do Natal consumista na porta dos supermercados.
Com eles temos a orgia derrochona de consumo energético da iluminação elétrica, simbolizada entre nós pela paranóia dos milhões de luzinhas de Vigo; “um delírio banal de fotões”, que dizia há anos Xabier Pumariño.
No 2020, ano da pandemia, alguém sugeriu neste Diario “suprimir o Natal”, pois era “um paraíso para um vírus pandémico” pela multiplicação das reuniões sem precauções. Eu concordava num artigo nestas páginas (“Suprimir o Natal?”,23/ 12/ 2020), não só pelas razões de saúde, mas porque o Natal perdera a sua identidade e convertera-se numa caricatura esperpéntica do que foi na sua origem. Por isso, eu não tinha nenhum interesse em “salvar” esse falso Natal, que se converteu num insulto blasfemo para o Natal de Jesus-Cristo que ainda queremos celebrar muitos cristãos.
Por isso, aceitei com gosto o convite de Xosé Ramón Blanco para prologar um livro seu que anda a promocionar nestes dias: Nadal e consumismo. Como aponta ali, o austero Natal dos começos do cristianismo –e sobre tudo da Idade Meia, quando se foi popularizando com São Francisco–, converteu-se nas últimas décadas no maior símbolo do consumo e do dispêndio; um insulto para os mais pobres. Diz Moncho ali com acerto: “O Natal é a festa por excelência do consumo e em nenhuma outra data do ano mercamos tanto”; “O neoliberalismo do Natal chanta uma luminosa e gigante caixa de agasalhos no medio das prazas nas que fai anos se colocava un Nascimento”. “Nos tempos que corren o Natal cristão passou a honrar um novo deus: o do consumo”. No livro abunda o autor em datos económicos e sociopolíticos a este respeito. O mais grave é que a tradição do Natal “contribui a que o modelo depredador e a promoción do estilo de vida insaciable dos países ricos poida manter un comportamento insostibel, provocando uma inmoral débeda ecológica” e faga medrar a fenda entre ricos e pobres, com a cumplicidade da Igreja.
Más, se é certo que o Natal serviu “de motor ao sistema produtivo para alimentar unha cultura mercantilizada, banalizada e instrumentalizada”, este não é o verdadeiro espírito do Natal. Ainda que é certo que não conhecemos a realidade histórica-cientifica do nascimento de Jesus de Nazaré; pois Belém foi posto para situar ao Menino na descendência messiânica de David, e mês e dia forem postos pela Igreja como contraponto da festividade romana pagã do “Natalis solis invicti”. Só Mateus e Lucas tem uns “evangelhos da infância”; maravilhosos relatos elaborados desde a fé cristã. Mas, sobre tudo o de Lucas, tenhem uma teologia genial, acorde co Jesús Cristo que manifestam os Evangelhos: um Jesús libertador, achegado aos pobres, que morre coma um paria e um rebelde contra a injustiça do sistema pelo seu compromisso com eles.
Uma coisa é o relato do Natal –tomado de modo excessivamente literal– e outra a mensagem que transmite. Os evangelistas não mentem, só comunicam a sua fe como sabem e podem. A origem do Natal é –legitimamente para os cristãos- a singeleza do Deus conosco, do nascimento humilde em harmonia com a natureza, acolhido por gente humilde e rejeitado pelos poderosos como uma ameaça ao seu status. Luz na obscuridade dum mundo opressor.
O poeta Xosé A. Miguélez tem uns versos que eu recolhi noutro artigo no Diario (28/12/2022): “Trae un Neno o Nadal/ que ven do ceo,/ e nace con vivo afán/ de dar Alento./ Este neno trae paz,/ pois cura medos,/ chamándonos a amar,/ co seu exemplo”. É reconfortante sentir que Jesús “dá Alento”, “trae paz” e “cura medos”. Ainda que cada ano esse humilde nascimento numa austera manjadoira se converte em orgia de consumismo, em atentado contra os pobres e contra o equilíbrio duma natureza da qual estamos esgotando os seus recursos.
Bem sei que por muito que repita isto ano trás ano, a dinâmica do desenfreio consumista do Natal não vai parar; mas, como dizia Marco Aurelio (Meditaçoes): “O objeto da vida não é estar com a da maioria, mas escapar da fila dos tolos”.
[Este artigo foi publicado originariamente no Nós Diario]