Comparar-nos ou inspirar-nos

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Se mergulharmos na memória para procurar algumhas das experiências associativas ou políticas mais exitosas que tenhamos vivido, daremos por certo que todas elas estám atravessadas por umha experiência central: a cooperaçom. Nom nasceram da concorrência entre os participantes nem do desgaste voluntarista dum feixe de membros ante a passividade do resto, senom dum tipo particular de harmonia de grupo, multiplicador dos logros e generador dumha das formas mais puras da alegria: o trabalho em mao comum. Baseárom-se num reparto atinado de roles e carga de trabalho, dumha combinaçom efectiva de habilidades diferentes, e na procura dum produto final que integrava e ponderava os pontos de vista particulares numha síntese superior. Neste infrequente equilíbrio, que bem podemos comparar às eficazes fusons que tenhem lugar por vezes numha equipa desportiva, num colectivo de pensamento, num grupo de dançantes ou numha orquestra, reina um ánimo específico que bem se pode detectar, e que fai operar o mecanismo, aparentemente milagroso, de salientar perfis e talentos individuais, sem estes degenerarem na lógica da comparaçom e da concorrência. O seu resultado final remite a umha peça musical bem executada, a um minucioso mosaico que junge detalhismo e composiçom panorámica, ou ao jogo calculado de cámbios de ritmo, relevos e apoios recíprocos que se dá nas provas desportivas de fundo, como o ciclismo. Umha fusom de beleza e eficácia que nos deixa sempre pampos. Distinto à rotina, distinto à rivalidade feroz dentro do grupo, e distinto também ao desleixo depressivo que paralisa as dinámicas sociais, o verdadeiro momento cooperativo parece o contraponto extraordinário às dinámicas de decadência colectiva. Como tal, devêssemos estudá-lo para tentar reproduzi-lo.

Distinto à rotina, distinto à rivalidade feroz dentro do grupo, e distinto também ao desleixo depressivo que paralisa as dinámicas sociais, o verdadeiro momento cooperativo parece o contraponto extraordinário às dinámicas de decadência colectiva. Como tal, devêssemos estudá-lo para tentar reproduzi-lo.

Certo é que nom sabemos exactamente quando e como chega; na verdade, nom o produzimos, senom que se produz; os estudiosos da condiçom humana detectárom que a vivência da catástrofe e do perigo iminente acordam em nós um pulo anímico sem igual apoiado na força da ajuda mútua, como vivenciou a Galiza durante a crise do Prestige. Si sabemos, porém, que esta experiência tem a ver com umha mudança nos sistemas perceptivos das pessoas, naquilo que certos estudos psicológicos chamárom ‘o sesgo de comparaçom’. Nas situaçons de medo, insegurança, tristura, agressividade, tendemos a utilizar a ‘comparaçom cara abaixo’. Tendemos a procurar o contraste com os nossos iguais ou ligeiramente inferiores, para reforçar a nossa auto-estima danada. É por isso que em tantas ocasions a classe obreira aponta as suas iras ou prejuízos contra a comunidade imigrante, o homem contra a mulher que submete, a naçom dominada contra umha naçom também dominada, mas de estatus ainda inferior, o desgraçado com aquele que sofre um malfado ainda pior, o pequeno grupo radical contra o grupo radical ainda mais cativo, do que o arredam apenas uns milímetros de ideologia. No mundo árabe existe um particular racismo contra o negro africano, ainda mais marginado e oprimido que o magrebi; galegos e galegas temos ouvido tópicos pejorativos contra o nosso povo pronunciados mesmo por independentistas cataláns ou bascos, apesar de estarmos espezinhados pola mesma bota espanhola.

Nas situaçons de medo, insegurança, tristura, agressividade, tendemos a utilizar a ‘comparaçom cara abaixo’. Tendemos a procurar o contraste com os nossos iguais ou ligeiramente inferiores, para reforçar a nossa auto-estima danada.

E estes jogos comparativos agudizam-se até o humor nas periferias da periferia: um amigo da Marinha contava-nos um dia que há décadas, quando os jogadores da equipa de futebol da Veiga, eunaviegos, competiam em território asturiano, eram desprezados como ‘galegos’; e quando jogavam no território da nossa comunidade autónoma eram insultados como ‘portugueses’. Em geral, e para além dos jogos de poder entre distintos sectores dum povo ou entre distintos, povos, a ‘comparaçom cara abaixo,’ pode tomar forma de maledicência. Por trás da maledicência há sempre umha comparaçom explícita na que um se situa por cima da pessoa à que refere. Como tal, exprime umha doença social. Se detectamos o grau de descomposiçom dum material orgánico polo seu fedor, quiçá pudéssemos detectar o grau de descomposiçom dumha sociedade, o seu nível de violência silente, polo seu grau de maledicência.

Ricardo Levins

Por trás da maledicência há sempre umha comparaçom explícita na que um se situa por cima da pessoa à que refere. Como tal, exprime umha doença social.

Estudiosas do ‘sesgo de comparaçom’ descobrírom que nas dinámicas cooperativas nom só desaparece o recurso compulsivo da ‘comparaçom cara abaixo’, senom que a comparaçom ressentida, soberbia ou orgulhosa vira no seu contrário: a emulaçom. Em dinámicas de ajuda mútua, um nom olha para abaixo, senom para acima, e vê nas dotes, habilidades e disposiçons dos demais um norte ideal ao que dirigir-se, mesmo senom o pode alcançar. A literatura revolucionária (inspirada na hagiografia cristá) sempre fomentou o recurso às biografias referentes para fomentar a emulaçom de capacidades e atitudes. Se nos desprendermos de qualquer sectarismo, devêssemos ampliar o conhecimento biográfico além das luitadoras, e conhecermos, com ánimo emulador, as vidas de quem despontárom na arte, na ciência, na exploraçom, nos cuidados, na compaixom, no pensamento ou na inventiva.

Quanto mais cooperamos, mais nos decatamos do pouco que, como indivíduos isolados, somos e podemos; quanto mais cooperamos, menos olhamos para nós mesmos e mais apontamos a mirada cara o alto.